INTRODUÇÃO
Adolescentes inseridos em um contexto social, cultural e económico favoráveis apresentam maiores oportunidades de acesso à educação e, portanto, melhor desempenho escolar, foi o que destacou o relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes - Pisa 2018. O referido relatório sugere ainda que a satisfação com a vida (avaliação geral que o indivíduo faz sobre a sua Qualidade de Vida - QV) está, até certo grau, relacionada ao melhor rendimento escolar1.
A QV é definida como a "percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações"2. Como o próprio conceito sugere, é um termo amplo e multifacetado, estudado por diversas ciências. No âmbito da saúde, o julgamento individual acerca do impacto das questões de saúde na qualidade de vida corresponde à Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QvRS)3.
O número de investigações sobre a QV e suas relações com a saúde é crescente, com produção heterogênea acerca da temática. Entretanto, quando se trata da população adolescente, o conhecimento ainda é incipiente, e a maior parte dos estudos tem foco em contextos patológicos, com carência de investigações que retratem as flutuações naturais da QV durante a adolescência e as suas implicações biopsicossociais4.
Instabilidades são esperadas na percepção da QVRS em períodos transacionais como a adolescência, mas desvios disfuncionais devem ser detectados de modo a minimizar suas implicações negativas, inclusive no contexto escolar5. Consoante ao que indica o relatório da OECD, estudos elucidam a inter-relação entre a QV e variáveis escolares, o que pode, inclusive, repercutir nas expectativas relacionadas ao futuro escolar e profissional dos jovens6,7.
Dentre as variáveis escolares, o Rendimento Acadêmico (RA) é uma das quais tem sido relacionada à QVRS. Conceitualmente, RA refere-se ao conjunto de habilidades adquiridas pelo aluno em sua trajetória escolar, sob a influência de múltiplos fatores, de ordem biológica, cognitiva, emocional, escolar, familiar e sociodemográfica8.
O interesse pelo estudo da relação entre a QVRS e o RA é recente, com dados que retomam à última década, e estudos concentrados em países desenvolvidos, o que reduz a capacidade de generalização dos resultados e evidencia a necessidade de investigações em países mais pobres ou menos desenvolvidos5,6.
Os estudos sobre a temática são uníssonos ao relatar a existência de relação positiva entre as duas variáveis em questão, QVRS e RA. A baixa percepção da QV tem sido fortemente associada ao pior desempenho acadêmico, absenteísmo e ideação de evadir da escola7. Além disso, análise longitudinal reforça a importância da manutenção de índices elevados de QV para o alcance de melhor rendimento acadêmico na adolescência5.
Apesar dos achados indicarem relação entre as variáveis, não há, até onde se tem conhecimento, estudos que analisem a relação das variáveis à luz das especificidades de gênero. Nesse sentido, por considerar que a percepção da QVRS apresenta singularidades a depender do sexo avaliado9,10, torna-se oportuno o estudo da relação entre a QVRS e o RA segundo o sexo dos adolescentes. Objetiva-se, portanto, analisar a qualidade de vida relacionada à saúde e a sua relação com o rendimento acadêmico segundo o sexo de adolescentes escolares.
MATERIAL E MÉTODO
Estudo transversal, correlacional, de abordagem quantitativa realizado no Instituto Federal de Educação, Ciencia e Tecnologia do Maranhão (IFMA), entre os meses de maio a agosto de 2018. Os Institutos Federais, criados em 2008, diferenciam-se pela equipe técnica-administrativa diversificada que inclui profissionais da saúde (médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, nutricionista, psicólogo e odontólogo) que desempenham ações preventivas e interventivas de atendimento básico aos estudantes.
O IFMA, atualmente, possui 29 campi e o total aproximado de 27 mil alunos. Foram incluídos os campi inaugurados há menos de um ano e com equipe de saúde recém-instalada (menos de ano de atuação), por entender que os profissionais de saúde não tiveram tempo suficiente para intervir e provocar mudanças na saúde e QV dos estudantes. Assim, os campi situados nas cidades de Pedreiras e Grajaú integraram o estudo (cerca de 3% dos discentes do IFMA).
A população de referência foi de 469 estudantes adolescentes, 10 a 19 anos. A amostragem foi do tipo censitária, todos os estudantes foram convidados a participar do estudo. Foram excluídos aqueles que, no período da coleta dos dados, tiveram a matrícula cancelada ou trancada (1), que foram transferidos (0), jubilados (0) ou evadiram da escola (1).
Após aplicação dos critérios de exclusão, todos os 467 estudantes receberam, em sala de aula, mediante autorização da instituição participante e aprovação ética, a partir de maio de 2018, um envelope contendo os termos éticos com esclarecimentos sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa. Os pesquisadores realizaram três tentativas para receber os termos assinados, comparecendo presencialmente nas turmas em um intervalo mínimo de dois dias entre as abordagens. Concluídas as três tentativas, 172 discentes não devolveram os termos éticos assinados. Dos 295 participantes que os entregaram, 6 não foram incluídos na análise por terem participado do teste piloto, resultando na amostra final de 289 participantes (taxa de resposta = 61,9%).
A coleta de dados envolveu a utilização de três instrumentos: I) Características sociodemográficas; idade, gênero, etnia, estado civil, filhos, atividade laboral; II) Avaliação da qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) por meio do KIDSCREEN-52; III) Registro de dados acadêmicos: Índice de rendimento acadêmico (IRA), com valores de 0 a 10 correspondente à média aritmética ponderada das notas obtidas em todas as disciplinas cursadas e III.2) Assiduidade, percentual de frequência escolar.
Os dois primeiros instrumentos foram auto-preenchidos pelos participantes por meio do Formulários Google, o terceiro foi preenchido pelo pesquisador através de coleta direta no sistema acadêmico da instituição participante. O uso de formulário eletrónico permitiu que fosse estabelecida a obrigatoriedade de resposta em cada questão, eliminando a possibilidade de dados faltantes.
O instrumento para avaliação da QVRS, KIDSCREEN-52, é uma escala do tipo likert de 5 pontos que mensura a QVRS de crianças e adolescentes por meio de dez dimensões, a saber: 1) saúde e atividade física; 2) sentimentos; 3) estado emocional; 4) autopercepção; 5) autonomia e tempo livre; 6) família/ambiente familiar; 7) aspectos financeiros; 8) amigos e apoio social; 9) ambiente escolar e 10) provocação/bullying. As pontuações, por dimensão, são apresentadas através de Escores-T (média: 50 e desvio padrão: 10) com variação de 0 a 100, pior e melhor QVRS, respectivamente. Além disso, um escore geral foi computado através da soma das pontuações brutas totais, variando de 52 a 26211.
Neste estudo, foi utilizada a sua versão traduzida, adaptada e validada para o contexto brasileiro, com consistência interna média de 0,821, variando de 0,528 (saúde e atividade física) a 0,901 (aspectos financeiros)12. A versão brasileira em nada difere da original no que tange ao número de itens e dimensões analisadas e segue a mesma metodologia para cálculo dos escores geral e por dimensão.
Durante o teste piloto, a aplicação dos instrumentos foi avaliada para cronometrar o tempo de resposta (aproximadamente 30 minutos, considerando o momento para instruções e preenchimento dos formulários) e perceber pontos de melhoria no que tange à redação das questões e problemas de compreensão, entretanto, nenhuma dificuldade foi relatada e não houve alterações nos instrumentos. De modo a diversificar o grupo envolvido nesta etapa, foram incluídos discentes de ambos os sexos e das diferentes séries do ensino médio.
Para a coleta de dados propriamente dita, foram acordados data e horário para aplicação dos instrumentos presencialmente, nos laboratórios de informática do próprio Instituto. Na tentativa de dirimir a possibilidade de os participantes interferirem nas respostas dos alunos subsequentes, solicitou-se o sigilo quanto ao teor das questões, bem como a aplicação do formulário ocorreu em um curto intervalo de tempo, não superior a duas semanas em cada campus. O restante do período refere-se à entrega e recebimento dos termos éticos e à coleta dos dados acadêmicos, realizada pelo próprio pesquisador.
Os dados coletados foram analisados estatisticamente através do Software Statistical Package for the Social Science (SPSS®), versão 20.0. O nível de significância adotado foi de a= 0,05. Inicialmente, foi realizada a caracterização da população (dados sociodemográficos e acadêmicos) por meio de estatísticas descritivas como frequência absoluta (n) e relativa (%). Com relação às variáveis quantitativas, foram obtidas medidas de tendência central (média) e de dispersão (desvio padrão). Para a análise da QVRS foi mensurado o escore geral e por dimensão (Escores-T). Em seguida, testou-se a normalidade dos dados (QVRS e IRA) por meio do teste Kolmogorov-Smirnov, comprovando-se um padrão de distribuição assimétrico ou não-normal.
As diferenças da QVRS por sexo foram verificadas por meio do Teste U de Mann-Whitney. A análise da relação entre as variáveis QVRS e IRA foram estabelecidas por meio da Correlação de Spearman. A interpretação da magnitude de correlação seguiu a seguinte classificação: 0,0 a 0,3 (fraca); 0,4 a 0,7 (moderada); acima de 0,7 (forte)
Para garantia da confidencialidade, anonimato e privacidade, foram respeitados todos os preceitos éticos contidos na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. O estudo foi submetido à apreciação e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, parecer n° 2.445.803.
RESULTADOS
Caracterização sociodemográfica e acadêmica dos adolescentes (Tabela 1): A maioria possuía idade superior a 15 anos, era do sexo feminino, solteira, sem filhos, não exercia atividades laborais e autorreferiu cor parda/preta.
Qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) dos adolescentes (Tabela 2): Segundo o sexo, os resultados indicaram pior percepção da QVRS pelas adolescentes do gênero feminino, com diferença significativa em seis das dez dimensões avaliadas, a saber: saúde e atividade, sentimentos, estado emocional, autopercepção, autonomia e tempo livre, família/ambiente familiar.
Qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) e Índice de rendimento acadêmico (IRA) (Tabelas 3 e 4): Em relação às correlações entre QVRS e IRA, os dados revelam diferenças entre os sexos. Para as meninas, estiveram diretamente correlacionadas ao IRA, as dimensões relacionadas à saúde e atividade física, sentimentos, estado emocional, ambiente familiar e escolar. Entretanto, para o sexo oposto, apenas a satisfação com o ambiente escolar teve relação direta com o IRA, tendo o julgamento sobre a saúde e atividade física e a autopercepção comportamento inverso. Apesar da significância estatística, todas as correlações estabelecidas apresentaram limiar fraco.
DISCUSSÃO
O presente estudo analisa a relação entre a QVRS e o RA de adolescentes. Integra um grupo restrito de estudos que aborda a temática e até onde se tem conhecimento é o primeiro a retratar a população brasileira e a estabelecer distinções segundo o sexo dos participantes. Os resultados demonstram que adolescentes do sexo feminino apresentam pior percepção da QVRS geral e em seis das dez dimensões avaliadas.
Estudos prévios já relataram disparidades da QVRS entre os sexos. Em geral, as meninas tem pior julgamento da sua QV, sobretudo no que tange à insatisfação com a imagem corporal, por vezes relacionada à alteração do peso e hábitos sedentários, o que requer maior atenção no que tange à ocorrência emoções depressivas, sentimentos estressantes e comportamento suicida14-16. Ademais, elas julgam ter menor oportunidade para decidir sobre o tempo gasto com atividades sociais e de lazer, corroborando para a ocorrência de conflitos familiares na tentativa de negociação da autonomia e questionamento da autoridade dos pais17.
No que se refere à correlação entre a QVRS e o IRA, também foram observadas divergências relacionadas ao sexo. Para o sexo feminino, o melhor rendimento na escola apresentou relação direta com o bem-estar físico e psicológico e com os relacionamentos familiares e escolares harmoniosos. Por outro lado, para os adolescentes do gênero masculino, apenas o ambiente escolar teve relação positiva com RA; a saúde e atividade física, bem como a autopercepção estiveram inversamente relacionadas ao desempenho na escola.
Os referidos achados corroboram com a literatura existente ao afirmar a existencia do relacionamento entre as duas variáveis. O impacto da satisfação com a vida na produtividade de adolescentes foi testado em um estudo com 917 estudantes norteamericanos, revelando uma variedade de benefícios relacionados à escola, tais como motivação e engajamento, apesar de não ter sido identificada interferência direta no rendimento acadêmico6.
Na mesma perspectiva, estudo transversal investigou as dificuldades escolares enfrentadas por 1559 adolescentes na França. Os achados apontaram que o absenteísmo, a baixa performance acadêmica e o desejo de evadir da escola estiveram associados a problemas relacionados à saúde física e emocional, aos relacionamentos sociais e ao contexto ambiental ao qual o adolescente está inserido7. A relação também foi abservada em análise longitudinal com adolescentes em Hong Kong, indicando que as repercussões da relação entre a QVRS e as dimensões escolares tendem a manifestar-se a longo prazo5.
Não obstante, os estudos sobre a temática assumem percursos metodológicos diversos, múltipla abordagem dos dados, e limitam-se à realidade específica do local estudado, o que impede a comparação fiel dos resultados. Nesse sentido, em termos de confiabilidade dos resultados, apesar da relação entre QVRS e RA ter sido estudada em outros contextos5-7, dar-se-á prioridade à comparação com estudos que utilizaram o KIDSCREEN-52 para mensuração QVRS.
Nesse cenário, apenas dados argentinos serão analisados comparativamente. Em um estudo com 552 adolescentes, pesquisadores identificaram relação do RA com quatro dimensões da QVRS, duas das quais também foram verificadas no presente estudo, a saber: ambiente familiar e escolar, contudo não fizeram distinção por sexo18. Tal fato reforça a importância do suporte articulado entre os núcleos familiar e escolar, na construção de relações harmoniosas que corroboram para o bem estar geral e melhor desempenho acadêmico desses adolescentes.
A análise específica das divergências por sexo demonstra que entre as adolescentes do sexo feminino o relacionamento da QVRS com o RA é mais evidente, envolvendo um número superior de dimensões. A isso se alinha o fato das meninas apresentarem pior percepção da QVRS, quando comparadas ao sexo oposto, por razões já discutidas anteriormente9,10.
Além do mais, o desempenho acadêmico delas parece estar mais susceptível a interferências alheias ao contexto escolar, tais como o status de saúde física e mental e o suporte familiar percebido. Destaca-se que não havia registros de relação entre as dimensões de saúde física e mental com o desempenho acadêmico de adolescentes18. Sugere-se que a novidade observada esteja relacionada às características socioculturais e económicas dos grupos envolvidos, desmascarando os níveis superiores de mortalidade geral, sintomas ansiosos e depressivos, bem como o baixo investimento com a saúde dessa população na realidade brasileira19.
Em relação aos adolescentes do sexo masculino, peculiaridades merecem ser debatidas. A correlação negativa entre o IRA e duas dimensões da QVRS (saúde e atividade física, autopercepção) expõe evidências ainda inconclusivas que despertam a atenção para o potencial negativo dessas dimensões. A prática de atividade física é vital para o desenvolvimento na adolescência, com repercussões observadas na QVRS desse grupo populacional20. Entretanto, dados sugerem que o envolvimento excessivo em atividades esportivas priva os alunos do tempo de estudo que poderia ser investido na melhoria do seu desempenho na escola21. Da mesma forma, a sobrecarga escolar corrobora para a inatividade física, principalmente entre os meninos22.
Importante salientar que, apesar dos dados encontados, o presente estudo não objetiva desestimular a prática de atividade, uma vez que é reconhecida a sua importância para a promoção do bem estar na adolescência. Por outro lado, os achados incitam a discussão e o ponderamento sobre os aspectos positivos e negativos inerentes a essa relação, sobretudo para os meninos.
Por fim, a dimensão ambiente escolar foi a única que apresentou comportamento similar entre os sexos por meio da correlação positiva com o RA. Isso demonstra que, para os adolescentes, independente do sexo, estar satisfeito com a vida escolar implica em melhor rendimento na escola. Entende-se, portanto, que experiências escolares exitosas, percebidas pela capacidade de aprendizagem e satisfação com a escola, contribuem para o melhor rendimento acadêmico dos adolescentes23.
A análise da correlação entre a QVRS e o RA representa uma importante linha de ação, ao reconhecer as necessidades de atuação tanto no âmbito das ações de saúde como em relação às práticas pedagógicas que, dentro do ambiente escolar, devem convergir para o bem comum, estimulando o pleno desenvolvimento dos estudantes. Assim, defende-se que a QVRS deve ser um dos focos de atenção na prática da enfermagem escolar, para o rastreio das dimensões da vida pior avaliadas pelos adolescentes, coletiva ou individualmente. E, baseado no diagnóstico inicial, intervenções oportunas poderão ser delineadas.
Os achados contribuem para avanços na saúde e qualidade de vida da população adolescente, entretanto, apresenta limitações importantes a serem salientadas. O estudo envolveu uma única Instituição de Ensino e a restrição geográfica da população estudada impossibilita a generalização dos resultados. Além disso, o delineamento transversal dos dados impossibilita a inferência de causalidade entre as variáveis. Futuras investigações devem destinar esforços ao desenvolvimento de estudos longitudinais que favoreçam o melhor entendimento das flutuações da QVRS durante os anos que compreendem a adolescência.
CONCLUSÃO
O presente estudo identifica as diferenças da QVRS e da sua relação com o RA segundo o sexo de adolescentes escolares. Além de ampliar a discussão sobre a temática, representa o primeiro estudo a envolver um grupo de adolescentes brasileiros. Os achados concordam com estudos prévios ao identificar a pior percepção da QVRS pelas meninas, na maioria das dimensões avaliadas.
Além disso, observaram-se correlações fracas entre dimensões da QVRS e o RA, com diferenças entre os sexos. Para as meninas, cinco domínios da QVRS apresentaram correlação direta com o RA, são elas: saúde e atividade física, sentimentos, estado emocional, ambiente familiar e escolar. Para o sexo oposto, apenas três: ambiente escolar, saúde e atividade física e autopercepção, tendo as duas últimas apresentado correlação inversa.