INTRODUÇÃO
A influência da espiritualidade nos aspectos relacionados à vida humana tem sido continuamente abordada por estudiosos do tema e, em consequência, apresentado crescente publicação científica nas últimas décadas1,2. É possível observar que essa influência é atrelada à defesa de que a espiritualidade seja benéfica nas respostas humanas aos desafios e dificuldades presentes no cotidiano das experiências vividas3.
A inter-relação no desenvolvimento de competências para a escolha de comportamentos saudáveis e a expressão da espiritualidade tem sido aclamada como um dos seus aspectos potencializadores na atribuição protetora4. Também se constitui alicerce da relação entre a espiritualidade e saúde a forma como as pessoas reagem às situações de adoecimento5. Nesse sentido, a espiritualidade é apontada como elemento humano de potencialidade nas atitudes pessoais, familiares e sociais, favorecendo reações mais positivas, especialmente no enfrentamento das situações em que o adoecimento inspira cuidados de saúde que ultrapassam os limites da segurança domiciliar.
Em contrapartida, outras afirmações ou preocupações surgem nesse cenário, que atribuem a efeitos negativos de alguns construtos relacionados à espiritualidade como resultado na influência de decisões que afetem o tratamento médico6,7.
A espiritualidade é um tema complexo e tem sido considerado central no cuidado humano, despertando interesse de profissionais da área da saúde e consequentemente, observa-se estudos em diversos países, tanto de cultura oriental como ocidental1-4. Identifica-se o reconhecimento da importância na abordagem da espiritualidade no cuidado à saúde, contudo os profissionais ainda se sentem inseguros em trazer essa perspectiva para a prática clínica.
Muito dessa insegurança está associada ao fato de existirem, na literatura sobre o tema, interpretações diversas que trazem perspectivas diferentes para a integração da espiritualidade no cuidado(8, 9). Assim, este estudo traz como questionamento: ¿Como distinguir qual abordagem seguir no momento de integrar a espiritualidade à prática de cuidados em saúde diante das possibilidades identificadas nos diversos estudos científicos?
Diversos elementos são considerados expressões de espiritualidade, assim, essa pesquisa teve como objetivo analisar, sistematizar e validar um conceito de espiritualidade com o intuito de contribuir para a sua integração no cuidado à saúde humana.
MATERIAL E MÉTODO
Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, exploratório de análise e validação de conceito na perspectiva da compreensão e inclusão da espiritualidade como dimensão humana a ser considerada nas experiências pessoais e na prática profissional do cuidado em saúde.
Foi instrumentalizado em dois momentos: previamente, realizou-se uma ampla e exaustiva busca de artigos científicos sobre a espiritualidade e posteriormente utilizou-se de um método de análise para sistematização do conceito. No segundo momento, o conceito sistematizado foi enviado para autores de artigos científicos sobre espiritualidade para análise e validação conforme técnica e critérios pré-estabelecidos.
Análise do conceito: Foi utilizada a técnica de Walker e Avant10 que compreende 8 etapas. Em virtude das peculiaridades do fenómeno a ser pesquisado, optou-se por utilizar seis das oito etapas sugeridas: 1) seleção do conceito, 2) estabelecimento dos objetivos da análise, 3) identificação dos usos do conceito, 4) determinação dos atributos definidores, 5) identificação de antecedentes e consequentes e 6) definição de referências empíricas.
Assim, a seleção do conceito de "espiritualidade" para análise foi definida em março de 2017, sendo utilizado como critério principal o fato de já ser tema de estudo prévio dos autores da pesquisa. Por já conhecerem a temática, suas fragilidades e potencialidades, outras perspectivas foram consideradas na escolha: presença de uma diversidade de expressões do conceito percebido na literatura; necessidade de identificar as características do conceito de espiritualidade que podem influenciar nas experiências humanas, incluindo as questões relacionadas à saúde; e a relação entre os conceitos de espiritualidade, religiosidade e religião.
A análise fundamentou-se no esclarecimento do significado deste fenómeno com base em dados disponíveis na literatura para a sistematização de uma definição e posterior validação conceitual. Constituiu um exercício formal e sistemático para esclarecimento do conceito através de uma revisão integrativa de literatura, seguindo as etapas de formulação do problema com a identificação das informações a serem extraídas, definições dos critérios de inclusão e exclusão, coleta de dados e análise dos dados11.
Para a revisão integrativa, foi identificado como questão problema norteadora o questionamento: ¿Quais aspectos/características e conceitos estão sendo atribuídos à definição de "espiritualidade"? Assim, definiu-se como principal critério de inclusão que o conceito de espiritualidade não fosse somente referenciado, mas que os autores trouxessem uma construção própria para a definição do conceito.
Outros critérios de inclusão estabelecidos foram: artigos científicos disponíveis na íntegra e publicados no período de 2013 a 2017, que abordassem espiritualidade como assunto principal, apresentassem limites humanos como delimitação de estudo e nos idiomas inglês e português. Não foram incluídos artigos na língua espanhola pois não se identificou estudos que trouxessem conceitos autênticos de espiritualidade. Destaca-se que o recorte temporal foi determinado na perspectiva de que o ano de início atendesse ao critério de terem sido publicados nos últimos cinco anos em relação ao início do estudo e o ano final foi determinado em função de ser o último ano possível, tendo em vista que a pesquisa foi finalizada no início de 2018.
Como critérios de exclusão foram considerados: artigos duplicados na base de dados; que não abordassem o conceito de espiritualidade ou só abordá-lo referenciado; apresentar viés de interpretação entre conceitos de espiritualidade, religiosidade e religião; e viés de interpretação entre espiritualida de e "práticas integrativas e complementares em saúde"12.
A pesquisa foi iniciada em abril de 2017 e finalizada em janeiro de 2018 com busca na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), utilizando o termo "espiritualidade", definido pelos Descritores em Ciência da Saúde (DeCS), sendo encontrados 983 artigos científicos que se adequaram aos critérios de inclusão. Após leitura preliminar dos títulos e resumos/abstract desses artigos foram excluídos 845 por não se adequarem ao tema e à questão norteadora do estudo. Restaram 138 artigos que foram lidos na íntegra e de acordo com os critérios de exclusão, foram excluídos 121 artigos: 09 (7,4%) duplicados na base de dados, 59 (48,8%) não abordavam o conceito/definição de espiritualidade ou só abordavam referenciado, 34 (28,1%) apresentavam viés de interpretação dos conceitos de espiritualidade e religiosidade, 19 (15,7%) tiveram viés de interpretação entre espiritualidade e "práticas integrativas e complementares em saúde" resultante da definição ser associada, exclusivamente, à aplicação dessas práticas. Assim, foram identificados 17 artigos científicos que se adequaram a todos os critérios de seleção.
Considerando a necessidade de rigor na definição da base de dados para a pesquisa, a escolha do portal de periódicos BVS deu-se pelo entendimento da importância deste espaço em relação à sua abrangência e diversidade de periódicos da área de saúde anexados nas bases de dados, além da praticidade de busca e delimitação de filtros definidos pelos pesquisadores e, principalmente, pela quantidade de textos completos disponíveis.
Após a seleção dos artigos com a identificação dos conceitos de espiritualidade, seguiu-se à determinação de atributos definidores como meio de proceder à busca de características que atuam como elementos para identificação do conceito. Esta etapa contribuiu para discriminar o que é uma expressão do conceito e compreender que ela pode variar de acordo com o contexto em que o conceito está inserido.
Em sequência à aplicação do método de análise, para identificação de antecedentes e consequentes, foi realizado um levantamento de aspectos, características ou eventos que ocorrem antes, ou seja, antecedem o fenómeno e aqueles que ocorrem posteriormente ao fenómeno. Para a identificação dos eventos antecedentes e consequentes, optou-se, respectivamente, pela utilização dos questionamentos: ¿Que eventos antecedentes ao reconhecimento da espiritualidade podem ser percebidos nas reações humanas frente às situações de adoecimento? ¿Que elementos identificados numa pessoa contribuem para a expressão da espiritualidade?
A identificação de referências empíricas para os atributos definidores possibilitou a caracterização de categorias ou classes de fenómenos observáveis que demonstraram a ocorrência do conceito. Nesse intuito, para a definição das referências empíricas, neste estudo, foi formulado o questionamento: ¿Quais as manifestações observáveis na pessoa espiritualizada?
Os autores julgaram não ser necessário a utilização das etapas de desenvolvimento de casos-modelo e de casos adicionais10, pois na identificação de antecedentes e consequentes e na determinação de referências empíricas foi possível contemplar a identificação de eventos, elementos e situações que serviram de referência para a análise do conceito.
Validação do conceito: Após finalização da primeira fase com a sistematização do conceito foi utilizada a proposta de Hoskins13 centrada no julgamento de um grupo de estudiosos para validação do conceito. Como ainda não está bem definido na literatura a padronização em relação à escolha e ao número apropriado de estudiosos para essa validação14, alguns critérios foram estabelecidos conforme o julgamento dos autores deste estudo.
Desta forma, após concordância entre estes pesquisadores, considerando que houve uma sistematização de conceito utilizando artigos resultantes da revisão, foi decidido como critério para a escolha dos estudiosos que, o conceito analisado e sistematizado, fosse avaliado e validado pelo primeiro autor das publicações resultantes desta revisão integrativa de literatura.
Assim, o conceito foi enviado por meio eletrónico de endereço de e-mail identificado nos artigos científicos, através de formulário específico criado pelos autores deste estudo com a opção de validação (sim/não) e um campo para adequações sugeridas pelos mesmos, se assim entendessem necessário sinalizá-los. Os formulários foram enviados em português para os autores correspondentes à essa língua e a tradução em inglês de idêntico teor foi enviada para os demais autores que publicaram na língua inglesa.
Para validação foi estabelecido que seria considerado que no mínimo 75% das respostas obtidas fossem afirmativas à validação14 e que seriam consideradas para avaliação as adequações sugeridas pelos avaliadores.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), através da ementa sob parecer do CAAE: 32197814.9.0000.0055.
RESULTADOS
Análise dos conceitos de espiritualidade atribuí dos em publicações científicas: Foram analisados 17 artigos científicos, sendo 12 na língua inglesa e 05 na língua portuguesa, quanto ao ano de publicação, foi encontrado 1 artigo publicado em 201315, 3 em 201416-18, 6 em 201519-24, 6 em 201625-30 e 1 em 201731 (Quadro 1).
A leitura minuciosa dos artigos proporcionou conhecer as principais aplicações da espiritualidade no cuidado em saúde abordadas pelos autores, estando relacionada com: a atenção de pessoas com HIV/AIDS e adesão à terapia antirretroviral, ao cuidado crítico e Unidade de Terapia Intensiva, às ciências humanas e sociais, aos cuidados paliativos e em situações de terminalidade, ao tratamento do câncer e acompanhamento a familiares, ao sentido da existência humana e humanização, a saúde mental, à psicologia, à terapêutica da dor, a formação profissional e assistência em enfermagem, a bioética, a filosofia existêncialista e ao cuidado às pessoas.
No âmbito das áreas de aplicabilidade da espiritualidade foi possível identificar que as perspectivas estão principalmente direcionadas para os cuidados paliativos nos aspectos de fim da vida17-19,25,27,28,31 e saúde mental/psicologia21-23,26,28, mas outras possibilidades já estão sendo propostas, como no cuidado às crianças25, na atenção às pessoas com doenças crónico degenerativas31, na atenção em unidades básicas de saúde21, como também na formação profissional26,30,31.
A partir da análise do conceito foi possível identificar quatro categorias das expressões de espiritualidade que dão sentido ao conceito, definidas como: expressões comportamentais, emocionais, afetivas e culturais; senso de conexão ou comunhão; significado e sentido existenciais; extrafísico.
Análise, sistematização e validação do conceito de espiritualidade: A discriminação dos elementos que atuam como atributo na identificação do conceito de espiritualidade compreendeu numa busca minuciosa de expressões abordada nos artigos científicos que estão, comumente, ligadas à espiritualidade. Contribuiu para a identificação dos atributos utilizados na definição de espiritualidade nos mais diversos contextos, sendo que entre os mais frequentemente relacionados estavam: transcendência; dimensão humana; relação com o divino ou sagrado; aspectos da relação humana consigo mesmo e com seu mundo, significado e sentido existenciais; fé; conexão ou comunhão; valores, tradições e crenças; transitoriedade; compaixão; holístico; conforto, equilíbrio e harmonia.
Considerando o exposto nas publicações, associado a um processo reflexivo próprio desta pesquisa, para identificação dos eventos antecedentes, os seus autores buscaram respostas ao questionamento: ¿Que eventos antecedentes ao reconhecimento da espiritualidade podem ser percebidos nas reações humanas frente às situações de adoecimento? Assim, como resultado, emergiram algumas respostas à indagação que estão aqui relatadas: inquietação e conflitos internos, preocupação, angústia espiritual, sofrimento emocional, desconhecimento e despreparo para considerar a espiritualidade na construção relacional e, finalmente, valorização na dualidade entre ciência e espiritualidade/ religiosidade/religião.
Em contrapartida, para captar os eventos que são consequentes ao fenómeno da espiritualidade, outro questionamento foi admitido como referencial na busca das possibilidades: ¿Que elementos identificados numa pessoa contribuem para a expressão da espiritualidade? Observou-se como respostas: reconhecimento da espiritualidade como dimensão humana; integração da espiritualidade nas experiências da vida, incluindo o cuidado à saúde; busca pelo embasamento científico na construção da prática profissional; sistematização do conhecimento; bem estar espiritual.
Por ser um fenómeno que remete à subjetivi-dade e à aspectos intrínsecos da natureza humana, a definição de referências empíricas não foi um exercício fácil, pois exigiu dos pesquisadores uma imersão em construções pessoais que fossem significativas para a expressão da espiritualidade. Dessa forma, as suas experiências pessoais e profissionais também foram consideradas como referência para o levantamento desses elementos.
Para a definição das referências empíricas, nesse estudo, foi considerado o questionamento: ¿Quais as manifestações observáveis na pessoa espiritualizada? Distinguiu-se no percurso as seguintes características: cuidados com os pensamentos e sentimentos; ponderação no comportamento; fé frente aos desafios da vida, na busca de ir além do que se vê; preocupação significativa consigo próprio e com o outro; consciência do autoconhecimento; agir ético e moral; enfrentamento das perdas com mais equilíbrio; busca pela harmonia nas relações humanas; discernimento do que é fundamental nas experiências da vida; força sobrenatural; sustentação da expressão da espiritualidade; respeito pela vida e desenvolvimento de relações saudáveis; integração da espiritualidade na vivência da religiosidade.
O processo de validação se concretizou a partir do envio deste conceito sistematizado, no período de fevereiro a março de 2018, para os primeiros autores dos artigos, sendo que dos 17 autores, 9 (53%) responderam aos e-mails. Destes, 2 autores foram de artigos publicados em português e 7 de artigos publicados na língua inglesa.
Após um fluxo de dois envios consecutivos, em razão da não resposta ao primeiro email enviado, foi finalizada a etapa de coleta dessas avaliações e em abril de 2018 a análise das respostas foi concluída. Considerando essas avaliações, constatou-se que 1 autor optou por não validar o conceito dando as justificativas para sua decisão; 1 autor validou o conceito sem adequações e os outros 7 autores validaram o conceito, mas propuseram adequações ao mesmo.
Em relação às considerações apontadas como justificativas para a não validação, apresenta-se as questões: a) muito vaga e geral, b) confunde espiritualidade com resultados de saúde e confunde o existencial com o espiritual, c) ênfase nas relações familiares como uma característica definidora, d) implicitamente monoteísta, e) não leva em conta definições de espiritualidade que vão além do indivíduo.
As principais adequações sugeridas foram relacionadas às questões: a) reforçar os aspectos relacionados à transcendência, b) incluir as relações com a religiosidade, divino ou sagrado, c) considerar a subjetividade intrínseca à experiência humana, d) rever a afirmação de que a espiritualidade seja, exclusivamente, benéfica.
Culminando com o processo de sistematização e validação, foi empregado esforço dos autores em considerar as adequações para o conceito apresentado e assim, como resultado do processo metodológico conceitual tem-se como definição deste estudo:
-A espiritualidade compreende uma das múltiplas dimensões humanas que existem internamente e se externam através de comportamentos, sentimentos e relacionamentos, estando ligada ao conjunto de convicções e experiências humanas que refletem o cuidado que se tem com a vida. Expressa, assim, a inter-relação do humano con sigo mesmo, com o outro, incluindo sua família e seu mundo social e natural, no sentido da integralidade da vida, potencializando os sensos de responsabilidade, solidariedade, generosidade, paciência, tolerância, autoconfiança e autoestima que levam ao distanciamento do que é nocivo e conduzem a escolhas do que é benéfico e vivifica. Abrange a complexidade e a contextualidade das experiências humanas que propiciam a percepção e a compreensão das potencialidades que o fazem ter fé e acreditar em viver os processos da existência com mais equilíbrio e harmonia e ir além dos limites físicos e materiais da sua realidade. Integra a crença num ser superior que aproxima o humano daquilo que eleva a sua condição mortal à situação de imortalidade, na busca de conforto e perspectiva de mudança.
DISCUSSÃO
É inegável a necessidade de discussão sobre a influência dos atributos e expressões de espiritualidade nas experiências da vida humana, incluindo a saúde. Na prática profissional de cuidado à saúde, ainda há muito o que ponderar sobre a relação existente entre espiritualidade e a forma como as pessoas respondem aos processos da vida, sejam eles positivos ou negativos, como em situações de adoecimento.
Em decorrência dos anseios humanos de ser considerado para além dos seus atributos fisiológicos, biológicos e sociais e da ampliação da consciência de profissionais da área de saúde da existência de fatores intrínsecos a cada indivíduo que interferem na lógica tecnicista, outras perspectivas estão sendo exigidas na caracterização do cuidado16-19,21,31.
A certeza da resposta terapêutica baseada única e exclusivamente no tratamento técnico/científico dos procedimentos, dos exames laboratoriais e bioimagens e da medicalização, está se diluindo frente à demanda de questionamentos pertinentes às experiências que resultam da interação de outros aspectos da dimensão humana relacionados à subjetividade, afetividade, emoções, atitudes individuais, propósitos e interpretações pessoais da vida15-18,20-22).
Os atributos identificados correspondem às características relacionadas à espiritualidade e refletem o comportamento, os sentimentos, os relacionamentos humanos, o senso de conexão consigo mesmo, com o outro e com o divino, mas sobretudo o aspecto da transcendência. Assim, é possível perceber atributos relacionados às características humanas, como respeito, generosidade, esperança, responsabilidade, altruísmo, compaixão e fé, atribuídos à compreensão da espiritualidade e consequentemente, entendidos como elementos que refletem melhor adaptação aos processos da vida15-19,25,27,31.
Nesse contexto, faz-se necessário considerar para a prática do cuidado em saúde, o entendimento de quem cuida e de quem é cuidado e quais expectativas estão presentes nessa construção. Mas, se por um lado, há o reconhecimento da necessidade de ir além da unilateralidade no cuidado, por outro, permanece a dificuldade de como integrar atributos e expressões da espiritualidade na prática profissional17-20,28.
As categorias extraídas a partir do processo de análise conceitual, correspondem à busca pelo esclarecimento e compreensão da espiritualidade. Nesse sentido, as expressões comportamentais, emocionais, afetivas e culturais correspondem às expressões relacionadas diretamente às questões práticas da convivência humana. Esses elementos devem ser considerados nas interfaces das relações humanas e podem refletir na ampliação do auto-conhecimento e no desenvolvimento emocional e afetivo que podem estimular o fortalecimento do autocontrole, favorecendo comportamentos individuais e sociais salutares3,4,18,27.
Contudo, deve ser observado que em culturas diferentes, os valores, as tradições e as crenças resultam em interpretações diversas da espiritualidade e em consequência, conduzem a vivências adequadas ao seu contexto. Faz-se necessário considerar para além da multiculturalidade, que indica apenas a coexistência de diversos grupos sociais sem considerar uma política de convivência, considerar a interculturalidade que reconhece a identidade dos diferentes grupos sociais e aponta para a busca de integração entre eles sem anular sua diversidade20,32
Refletir sobre as questões conceituais do multi e interculturalismo, contribuiu para uma outra reflexão sobre um atributo especialmente conflitante no entendimento da espiritualidade, a fé. Assim, se numa perspectiva multicultural, os aspectos relacionados a fé podem ser interpretados como fator de divergência entre culturas diferentes e na prática, produzir uma fé irracional que se traduz, muitas vezes, no fanatismo. Ao considerar o interculturalismo, reconhece-se a fé, que produz reflexão, num contexto amplo de integração, que sobretudo conduz ao respeito das divergências na sua expressão, existentes entre diferentes grupos sociais33.
Ao contextualizar a expressão da fé outras questões aparecem nesse cenário. A fé que ultrapassa os limites de ideologias, rituais e pragmatismos da prática religiosa, que tem origem no próprio homem, a partir das suas construções individuais e nesse caso, a crença em questão satisfaz à compreensão do que é significativo na vida de cada pessoa. Em contrapartida, tem-se a fé que tem origem divina e traz para a discussão, o significado da religiosidade na experiência da espiritualidade15. Alguns autores consideram que a depender da cultura presente em cada contexto, a religiosidade está próxima da espiritualidade e as suas vivências se fortalecem, mesmo tendo a clareza na concepção de conceitos diferentes15,20.
A religiosidade é entendida como uma experiência humana, caracterizada pela tendência de integrar-se às coisas sagradas e remete a quanto uma pessoa acredita ou exerce sua prática religiosa2. Diante dessa concepção, questiona-se a dissociação pretendida entre a vivência da espiritualidade e religiosidade, com o discurso de que, para algumas pessoas poderá ser uma tarefa difícil, pois uma pode ser significativa para a expressão da outra.
Se por um lado, os elementos até aqui abordados parecem suscitar diversidade de entendimentos, ao contrário, em todas as discussões um atributo da espiritualidade parece não levantar questionamentos e ser aceito como representativo da sua expressão. Essa competência se dá pela indicação da transcendência como representação da capacidade humana de ir além dos limites materiais e físicos da sua realidade, característica relacionada ao senso de conexão com algo que está além do racionalmente explicável29,30.
Diante do conjunto de construções integradas ao tema em estudo, parece ser comum o dimensionamento da espiritualidade como atributo de estudos de outras temáticas relacionadas à saúde, especialmente, aquelas que exigem uma compreensão e adaptação à situações de dificuldade que colocam à prova a existência humana, como em cuidados de finitude da vida ou cuidados paliativos. Nessa lógica, a espiritualidade parece exercer influência positiva sobre a forma como as pessoas vivem seus processos de terminalidade19,28,31.
Contudo, outras possibilidades interpretativas da influência da espiritualidade estão surgindo nesse cenário, introduzindo o tema em outras perspectivas, como em estudos relacionados à sua consideração na formação profissional26,30,31, nas relações de trabalho20 e no cuidado em diversas fases da vida humana23,24,31, e nos diversos níveis de complexidade da atenção à saúde15,21. Assim, é possível refletir sobre a abordagem da espiritualidade de forma ampla e abrangente, observando as peculiaridades e especificidades de cada contexto e realidade em que será considerada.
Um dos grandes desafios em todas as situações de integração da espiritualidade de forma prática à vida cotidiana, surgiu como inquietação da aplicação de um fenômeno que nasce da prerrogativa da dimensão humana: quais as manifestações que podem ser consideradas para distinguir uma pessoa espiritualizada? Sendo mais específicos, de que forma a espiritualidade pode ser reconhecida e mais especificamente, como pode ser aplicada?
O conceito resultante do processo sistematização, buscou englobar os atributos definidores e as expressões do conceito de espiritualidade ao percurso reflexivo percorrido pelos autores para construir um conceito amplo, mas que não trouxesse viés de confundimento com os conceitos de religiosidade e religião.
Contudo, é necessário reconhecer que os conceitos de espiritualidade e religiosidade podem apresentar uma aproximação pela natureza do senso de conexão com o sagrado, seja qual for a sua forma de expressão. Neste ponto, entende-se que apesar de não serem conceitos similares, as experiências pertinentes à vivência humana podem aproximá-los ou ao contrário afastá-los, considerando que a prática religiosa nem sempre é sinônimo de expressão da espiritualidade.
Pela proposta metodológica inicial, considerando as respostas presentadas, o conceito foi validado, contudo o número de respostas obtidas aos e-mails enviados para os autores dos estudos selecionados é uma limitação a ser ponderada. Também deve-se considerar a não inclusão de artigos em espanhol, devido à não identificação de conceitos de espiritualidade não referenciados, como uma limitação importante. Contudo, observa-se que na perspectiva da abrangência do conceito sistematizado, o mesmo possa estar integrado às diversas culturas.
Considera-se que a partir do percurso de análise conceitual associado às observações dos pesquisadores, durante a fase de definição das referências empíricas, foi possível chegar à possibilidade de sistematização do conceito de espiritualidade mais próximo de ser considerado para o cuidado em saúde.
CONCLUSÕES
A análise conceitual da espiritualidade constituiu um processo exaustivo de busca e compreensão de características, expressões e eventos com o intuito de sistematizar uma definição do fenómeno que contribuísse para a sua aplicação no cuidado em saúde. Por meio de investigação científica seguiu-se um percurso metodológico que possibilitou identificar variáveis do conceito de espiritualidade que ampliaram o entendimento sobre o tema em estudo e possibilitaram a sua sistematização conceitual.
É pertinente considerar que como tema transversal e interdisciplinar e que como constituinte do processo de análise, as experiências e reflexões dos autores foram consideradas, é possível que também se tenham compreensões e interpretações pessoais no conceito sistematizado e validado. Assim, ajuíza-se que outros entendimentos, considerações e propostas a respeito do conceito de espiritualidade sempre surgirão no âmbito das pesquisas sobre o fenômeno.
Reconhecemos a complexidade do fenômeno estudado e por isso se entende que nem todas as possibilidades de compreensão do conceito de espiritualidade foram esgotadas. Neste estudo, conclui-se que a espiritualidade constitui dimensão humana e reflete o cuidado que se tem com a vida, constituindo expressão de como as pessoas se interrelacionam e interagem em relação às circunstâncias e eventos que o envolvem, integrando a crença e fé num ser superior que o aproxima daquilo que transcende a natureza humana.