INTRODUÇÃO
O tratamento de emergência em saúde, dada a necessidade de rápida e assertiva tomada de decisão, predispõe à redução da qualidade do cuidado prestado, o que corrobora com a ocorrência e eventos adversos (EA)1. Os quais, segundo a Classificação Internacional para Segurança do Paciente, são caracterizados como incidentes que causam danos2, acometem um em cada 10 pacientes3, e impactam em maior mortalidade4.
A detecção desses agravos se dá por meio de notificação voluntária, revisão prospectiva e retrospectiva documental e por monitoramento de rumores de EA, de never events e de óbitos5. Neste contexto, pode-se utilizar de triggers ou clues que são "pistas" utilizadas pelo investigador para direcionar a busca de potenciais casos de EA na revisão documental6. Estas pistas ou ferramentas de gatilhos são empregadas, com efetividade, em estudos nacionais e internacionais, como demonstrado em revisão sistemática que evidenciou a identificação de erros, adoção de medidas preventivas e redução de eventos7. No serviço de emergência, seu uso é relevante, em especial ao se considerar a sensibilidade de 70% para identificar EA8.
Estudo observacional, realizado em serviços de emergência da Espanha, demonstrou que 51% dos incidentes foram considerados EA relacionados, principalmente, com administração de medicamentos, cuidados assistenciais e diag-nóstico9. Ainda, é sabido que serviços de emergência, dada sua complexidade e dinamicidade, são unidades nas quais o paciente está mais exposto aos EA, o que reduz a qualidade do cuidado prestado1.
Entre os instrumentos de rastreamento de EA de uso consolidado no âmbito hospitalar, tem-se o Global Trigger Tool, desenvolvido pelo Institute of Healthcare Improvement - IHI6. Este possui 53 triggers organizados em seis módulos: cuidado, medicamento, cirúrgico, cuidado intensivo, assistência perinatal e emergência. Outro instrumento de uso internacional é o preconizado pelo Canadian Adverse Events Study - CAES, contendo 19 triggers que abrangem o cuidado clínico, cirúrgico, intensivo, obstétrico, eletivo, de urgência e emergência10. Esses instrumentos, de relevância para pesquisas com detecção de EA, são traduzidos e adaptados culturalmente para diversos países, e também para o Brasil11.
Estudo realizado nos Estados Unidos, utilizando ferramenta de rastreio, identificou que 25,7% dos pacientes sofreram EA em serviços hospitalares, evidenciando danos leves, mas incluindo óbito12. O Estudo Ibero Americano de Eventos Adversos (IBEAS), realizado na América Latina, investigou cinco países com relação à ocorrência de EA e identificou que 10% dos pacientes sofreram algum tipo de dano durante a permanência no hospital. Dentre os EA encontrados, mais da metade foram considerados evitáveis; destacaram-se infecções hospitalares, eventos decorrentes de procedimentos cirúrgicos, erros assistenciais, de administração de medicamentos e de diagnóstico13.
Tendo interesse no estudo da ocorrência de EA em serviços de emergência, devido ao impacto que sua ocorrência causa para a sociedade e para a instituição, bem como ao risco a que os pacientes estão expostos, e com vistas a localizar e ampliar o rol de pistas para rastreamento de casos, considerou-se relevante investigar pesquisas que não utilizaram, exclusivamente, os instrumentos IHI e CAES. Neste contexto, o objetivo deste estudo foi identificar pistas para o rastreamento de EA em serviços de emergência.
MATERIAL E MÉTODO
Trata-se de uma revisão integrativa (RI), seguindo os passos propostos por Mendes, Silveira e Galvão (2008): (a) estabelecer hipótese ou questão de pesquisa; (b) buscar a literatura; (c) categorizar os estudos; (d) avaliar os estudos; (e) interpretar os resultados e (f) sintetizar o conhecimento. Optou-se por realizar uma RI, dentre os outros métodos de revisão possíveis, porque este tipo de estudo é amplo, permitindo a inclusão de pesquisa experimental e quase-experimental, o que favorece a compreensão completa do tema de interesse14.
A questão de pesquisa foi formulada utilizando a estratégia PEO, na qual P-população, E-exposição, O-desfecho15. Desta forma, a correspondência com a pesquisa resultou em P- pacientes de qualquer faixa etária; E- pistas para rastreamento de potenciais EA em serviços médicos de emergência, e O- eventos adversos, e a questão de pesquisa: "Quais pistas são utilizadas para o rastreamento de potenciais Eventos Adversos em pacientes atendidos em Serviços Médicos de Emergência?"
Foram buscadas publicações de artigos nos portais BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), que abriga as bases de dados IBECS (Índice Bibliográfico Espanhol em Ciências da Saúde) e MEDLINE ( Medical Literature Analysis and Retrieval System Online); e PubMed que além de oferecer recursos do MEDLINE, possui links para sites que possuem artigos com texto completo e outros assuntos relacionados. Incluiu-se a busca nas bases de dados CINAHL (Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature), Embase, Scopus e Web of Science, sendo estas escolhidas devido à relevância acadêmica para a área da saúde.
A busca foi realizada durante o mês de fevereiro de 2020, sem limite temporal, com assessoria de bibliotecária. A estratégia, para cada base, foi formulada a partir da combinação dos descritores disponíveis no Medical Subjects Headings (MESH). Para a busca no portal BVS, Embase e Web of Science a estratégia foi, literalmente: "Trigger tool" AND ("Emergency" OR "Emergencies" OR "Emergency Nursing" OR "Emergency Medical Services") AND ("Patient Harm" OR "Medical Errors" OR "Drug-Related Side Effects and Adverse Reactions"). Na base PUBMED: "Trigger tool" AND ("Emergency" OR "Emergencies" OR "Emergency Nursing" OR "Emergency medical services") AND "Adverse Events" AND "Patient Safety". Na base CINAHL: trigger tool AND emergency medical services OR (emergency care or emergency nursing) AND adverse events; e na Scopus: "trigger tool" AND ("emergency medical services" OR "emergency care" OR "emergency nursing") AND "adverse events".
Foram incluídos todos os artigos científicos publicados em inglês, português e/ou espanhol, relacionados ao atendimento de urgência e/ou emergência, ou faixa etária da população de estudo. Artigos repetidos identificados pelo gerenciador de referências EndNote®, relacionados ao atendimento pré-hospitalar móvel ou que não respondessem à questão de pesquisa, foram excluídos. Para tanto, realizou-se inicialmente a leitura do título e resumo, e quando esta não foi elucidativa, procedeu-se à leitura do artigo na íntegra. Este processo foi realizado por dois pesquisadores que analisaram qualitativamente o conteúdo das publicações.
Para o nível de evidência, foi utilizado o modelo de Melnyk e Fineout-Overholt16 que faz a classificação em sete níveis: I - evidências originárias de revisão sistemática ou metálise de ensaios clínicos controlados ou de diretrizes clínicas baseadas em revisões de ensaios clínicos randomizados controlados; II - evidências derivadas de ao menos um ensaio clínico randomizado controlado bem delineado; III - evidências provenientes de ensaios clínicos em randomização e bem delineados; IV - evidências de estudos de coorte e de caso-controle bem delineados; V - evidências originárias de revisão sistemática de estudos descritivos e qualitativos; VI - evidências derivadas de um único estudo descritivo ou qualitativo; VII - evidências originárias de opinião de especialistas ou comitês de especialistas. Segundo esta classificação, níveis I e II considera-se evidências fortes, III e IV moderadas e de V a VII fracas.
Foram encontrados 148 artigos na busca, 26 foram excluídos por duplicidade. Após esta etapa, 122 produções passaram por leitura do título e resumo em português, inglês ou espanhol, de acordo com a língua nativa, e foram excluídas 99; aquelas sem elucidação da característica e aplicabilidade à pergunta de pesquisa, foram lidas na íntegra. Dessas, foram excluídas 14, restando nove publicações17-25) elegíveis para a revisão. O fluxograma de coleta de dados está apresentado na Figura 1.
RESULTADOS
Após identificação e listagem das pistas empregadas nas publicações incluídas, e visando a aplicabilidade dos resultados na prática clínica, estas foram organizados em módulos, segundo afinidade ao atendimento/cuidado: (a) clínico; (b) cirúrgico; (c) trauma; (d) procedimento; (e) medicamento; e (f) laboratorial.
O Quadro 1 apresenta os artigos elegíveis e caracterizados segundo autores, país de origem, objetivo, método, nível de evidência e correspondente número de pistas elencadas na publicação. Entre as 239 pistas, 68 repetidas foram excluídas, restando 171, as quais foram agrupadas em módulos (Quadros 2 a 5). As pistas estão apresentadas, na ordem de maior frequência seguida da ordem alfabética; pistas similares foram apresentadas sequencialmente, independentemente da frequência. Os termos empregados nas publicações para nominar as pistas, não sofreram ajustes ou adaptações culturais para o português do Brasil.
A partir do agrupamento e organização em módulos, as pistas clínicas foram prevalentes (68; 39,8%), seguidas das relativas à administração de medicamento (49; 28,7%), laboratorial (40; 23,4%), procedimento (6; 3,5%), cirúrgico e trauma (4; 2,3%).
No módulo clínico (Quadro 2) estão agrupadas 68 pistas, sendo que 19 foram citadas em mais de um artigo. O módulo administração de medicamento (Quadro 3) compilou 49 pistas e o módulo laboratorial (Quadro 4) 40 pistas; destas 10 e sete constaram em mais de um artigo, respectivamente.
Os módulos cirúrgico e trauma apresentaram quatro pistas com uma repetição no cirúrgico; o módulo procedimento apresentou seis pistas, com duas que foram citadas por mais de um artigos. (Quadro 5).
DISCUSSÃO
Esta revisão permitiu identificar pistas utilizadas em nove pesquisas17-25. Com relação às pistas prevalentes no módulo clínico, é reconhecido que a transferência não planejada para um maior nível de cuidado é indicativa de complicações, entre as quais a ocorrência de EA. Neste contexto, estudo de caso controle avaliou as características dos pacientes transferidos da emergência para unidades de terapia intensiva após 24 horas de admissão, com o intuito de identificar quais sinais esses apresentavam, previamente à transferência. Resultado significativo evidenciou hipercapnia e taquipneia em pacientes sépticos, alterações que, quando detectadas precocemente, poderiam evitar a deterioração clínica e danos26.
Revisão sistemática que buscou identificar a relação entre os índices preditores de deterioração clínica e transferência de pacientes, do setor emergência para a unidade de terapia intensiva, evidenciou que a mortalidade aumentou em 2,4 vezes entre aqueles que tiveram diminuição da pressão arterial sistólica27. Deste modo, esta é pista importante para estudos de rastreamento de EA em serviços de emergência, e também aplicáveis a outras modalidades de atenção à saúde.
Sabe-se que o tempo de permanência dos pacientes sob cuidados de saúde, paradoxalmente, é indicador da qualidade assistencial28 pois, maior tempo infere baixa resolutividade e alta exposição aos riscos. No caso da pista apresentada pelos artigos desta RI, o tempo refere-se à "permanência >4h". No contexto assistencial brasileiro este tempo pode se estender por até 24 horas29, porém é sabido que muitas vezes pacientes enfrentam falta de leitos hospitalares, permanecendo no serviço de emergência por mais tempo que o necessário para os cuidados. De qualquer modo, a permanência é um alerta de que o paciente não evoluiu satisfatoriamente, ou não obteve vaga para devida hospitalização, requerendo o fato ser explorado pelo revisor dos registros, em busca de EA.
O uso de contenção mecânica é procedimento comum nos serviços de emergência, principalmente devido ao risco de queda ou perda de dispositivos, frente à agitação psicomotora e delirium30-31. Porém, a depender do tempo de restrição e a forma de sua aplicação, é procedimento que pode ocasionar lesões de pele32, prejuízos à circulação sanguínea, lesão articular, entre outros EA. Desta forma, é importante pista a ser utilizada em ferramentas de rastreamento no ambiente assistencial, possivelmente associada a incidentes com dano.
No módulo administração de medicamentos, o uso de naloxone e flumazenil, mostram-se como terapêuticas aplicadas para a investigação de intoxicação33. Ainda que o serviço de emergência, via de regra, não abrigue pacientes por tempo prolongado e infira menor risco de intoxicação, o uso desses fármacos pode contribuir para rastrear este EA. Por outro lado, opioides são comumente utilizados no controle da dor, em doses tóxicas podem causar náuseas, vómitos, depressão respiratória e sedação34, neste contexto, o uso de naloxone pode indicar intoxicação. Estudo avaliou apenas o uso deste agente reversor na emergência e demonstrou que dos 73 pacientes que usaram naloxone, em 58,9% identificou-se erro de medicação com dano. Já o flumazenil é agente reversor de benzodiazepínicos, fármaco que em excesso causa alterações no nível de consciência e dificuldade para retornar do estado de sedação35.
Portanto, o emprego de certos fármacos chama a atenção do revisor. Como exemplo, o uso de difenidramina pode auxiliar na identificação de reação adversa a medicamentos, quando se observa rush cutâneo, prurido e outras reações locais33. A administração de heparina (incluindo enoxaparina, fondaparinux, bivalrudin), isoladamente ou combinada com outros medicamentos de uso habitual, remete a complicações de ordem hemorrágica36. Sendo assim, seu uso, como bem como o de vitamina K, que é antagonista dos anticoagulantes, são indicativos de EA relacionados à distúrbios hemorrágicos.
Sobre o módulo laboratorial, estudo para rastrear EA relacionados à administração de medicamentos em um pronto-socorro brasileiro mostrou que das 38 pistas encontradas, 21 estavam relacionadas ao aumento da creatinina, ainda que nenhum caso tenha sido confirmado como EA33. Isso demonstra que apesar de ser uma pista oportuna na revisão primária, parece possuir baixa sensibilidade e especificidade na etapa confirmatória do caso. Contudo, persiste como pista relevante uma vez que pode indicar nefrotoxicidade relacionada ao uso de vários medicamentos33.
O módulo procedimentos, por sua vez, contemplou pistas relacionadas à realização de procedimentos em condições de emergência, tais como os relacionados ao manuseio de via aérea. Esses procedimentos podem aumentar o risco de danos, tais como queda na saturação, hipotensão e falhas de equipamentos37, prolongando o tempo de internamento e aumentando o risco de óbito38. É essencial a checagem do material necessário, bem como dos medicamentos, para garantir o cuidado seguro37-38. Por ser procedimento emergencial e que impõe riscos, essa é pista a ser observada pelo revisor atento.
A punção de acesso venoso central relacionase à necessidade de infusão de drogas vasoativas e garantia de infusão dos medicamentos de forma rápida. Por ser procedimento rotineiro em serviços de emergência, expõe o paciente a riscos, tais como, complicações vasculares, pulmonares e hematomas39. Sendo assim, se faz importante ao revisor investigar a rotina de uso de ultrassom para guiar esta prática, contribuindo para a redução do risco de complicações40, bem como do registro de intercorrências.
O módulo trauma é necessário aos serviços de emergência, uma vez que, estudo realizado em um serviço de emergência brasileiro, evidenciou que pacientes atendidos em decorrência de trauma foram, em sua maioria, vítimas de acidentes automotivos e quedas, necessitando de atendimento para alívio da dor e respectivos encaminhamentos41. Além disso, o atendimento inicial adequado, é fundamental para o desfecho da condição do paciente, como destaca estudo internacional que mostrou a importância do correto manejo com relação à imobilização da coluna cervical, evitando agravamento da condição do paciente, decorrente da inadequação do atendimento inicial42.
O módulo cirúrgico pode ter contribuído com um número pouco expressivo de pistas devido ao fato da grande maioria dos pacientes internados em unidades de emergência hospitalares, após serem prontamente encaminhados para sala cirúrgica, serem transferidos para unidades de internação ou de terapia intensiva. Diante desse fato, os rastreadores seriam empregados durante a hospitalização, e não mais no serviço de emergência.
Finalmente, destaca-se que o uso de pistas para a identificação de EA é primordial no processo de revisão retrospectiva, independentemente do número de registros amostrados, pois esse método revela ser superior a qualquer outro. No entanto, informações sobre sensibilidade, especificidade e valor preditivo positivo e negativo de cada pista são importantes para o estudo como forma de disponibilizar ferramentas de triagem, eficazes e acessíveis para detectar EA43.
CONCLUSÃO
Nesta pesquisa foi possível identificar as mais variadas pistas aplicadas em serviços de emergência, para o rastreamento de EA, com prevalência daquelas aplicáveis na prática clínica.
As diferenças metodológicas e da população-alvo utilizadas entre os estudos elegíveis justificam as divergências, principalmente, em relação ao número total de pistas empregadas, que variou entre um e 64 entre as produções analisadas. Este aspecto consiste em limitação do estudo. Desta forma, os dados reforçam a necessidade de aprimorar e padronizar critérios com alto poder de sensibilidade e especificidade para rastrear potenciais EA em serviços de emergência, com vistas a avançar na segurança do paciente nesse contexto assistencial.
A presente revisão integrativa apresenta um panorama global das pistas usadas para rastrear EA em serviços de emergência, identifica-se também como limitações a falta de menção, pelos autores, da sensibilidade e especificidade observadas nos estudos elegíveis, bem como o valor preditivo positivo e negativo da ferramenta, no geral ou de cada pista isoladamente. Outro aspecto limitante dos estudos e, consequentemente, desta revisão, é a adoção de critérios de inclusão e exclusão das pistas divergentes entre as pesquisas divulgadas.
Para promover a qualidade assistencial e a eleição de um conjunto de pistas, é necessário conhecer o valor preditivo positivo para busca e confirmação de EA em sua relação custo-benefício. Deste modo, para uso futuro das pistas identificadas nas publicações, analisadas e sintetizadas nesta RI, é necessária sua aplicação na revisão de registros, por meio de análise de prontuários. E, a partir da seleção das melhores pistas, seu emprego como método padrão-ouro para mensurar a prevalência, gravidade e evitabilidade de incidentes com danos