INTRODUÇÃO
O processo de ajuda em enfermagem consiste numa orientação para a atenção de cuidado ao ser humano. Constitui-se de comportamentos e ações que possibilitam o encontro entre pessoa-pessoa para o estabelecimento de um laço de respeito e confiança do ser cuidado para o ser que cuida, favorecido pela intenção em ajudar com co miseração, benevolência, estima, amabilidade, atenção, solidariedade e motivação1. O cuidar é um ato de ajuda que envolve tanto zelo, atenção, proteção, preocupação e atitudes quanto sentimentos e comportamentos que fortalecem as circunstâncias do vivido, pela necessidade explicita ou antecipada de aliviar uma vida ou condição humana2,3. Nas circunstâncias de vulnerabilidade pelo sofrimento e incapacidades, a ajuda ocupa o seu ponto máximo, como um apoio em que a pessoa que cuida precisa estar sensibilizada e habilitada para buscar a restauração afora da dimensão física e do objetivismo para com preender o ser cuidado em sua singularidade4. É nas situações de finitude da vida que surgem as maiores dificuldades, pela necessidade de dedicar atenção para o conforto e pela consciência da condição do paciente, da necessidade do cuidado individualizado e do apoio aos familiares no processo de luto5.
Essas dificuldades estão presentes na UTI, cenário do hospital com tratamentos de risco, emoções, falta de esperança de cura e trabalho estressante pela concentração de pacientes de alta complexidade com possibilidade de morte6. Os familiares desses pacientes podem apresentar sentimentos de desconfiança, insegurança e sofrimento quer seja durante a visita beira leito, quer seja na sala de espera da UTI. Para aguçar a visão de mundo na busca da compreensão do familiar no ambiente da UTI, fazse necessário somar a essa meta o compromisso moral, motivado para agir com solidariedade pela vontade de ser humano7. A percepção de um significado para ajudar na prática do enfermeiro, orientado por um referencial teórico-filosófico seria uma bússola para essa trilha, com possibilidade de resiliência para o familiar e paciente8. Em outras palavras, seria uma condição de modificar uma situação de sofrimento em crescimento e superação pela vontade de sentido em dizer sim em cada situação vivida, apesar de tudo9.
Nessa perspectiva, a proposta deste artigo é apresentar um guia sobre o processo de ajuda interpessoal de enfermagem ao familiar do paciente crítico, com base na tríade trágica -sofrimento, culpa e morte- viven-ciada pelo familiar do paciente crítico hospitalizado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), de um hospital geral e privado na cidade de Salvador, Brasil.
A guia emerge como um novo espaço de atuação do enfermeiro para dar apoio a esse ser que sofre na esperança de mudanças devido à condição do seu familiar que se encontra em estado crítico. Também pode vir a ser uma estratégia de intervenção no cuidado de enfermagem, por tratar-se do sofrimento e este ser um fenómeno existencial.
O referencial Frankliano na vivência do familiar do paciente crítico
O referencial teórico-filosófico do guia para o processo de ajuda interpersonal de enfermagem ao familiar do paciente crítico fundamentou-se no Processo de Enfermagem da Teoria das Necessidades Humanas Básicas e na Análise Existencial Frankliana10-12. A Análise Existencial Frankliana é pautada nas experiências valorativas do ser humano perante o que poderá "vir a ser" no percurso da sua vida, uma forma específica de compreender o ser-familiar como pessoa facultativa, ilimitada de possibilidades perante o sofrimento da situação do seu familiar crítico13. Ao se apreender o ser-familiar, esperase transformar a tríade trágica -sofrimento, culpa e morte- em otimismo trágico, isto é [...] um otimismo diante da tragédia e tendo em vista o potencial humano que, nos seus me lhores aspectos, sempre permite: 1. transformar o sofrimento numa conquista e numa realização humana; 2. extrair da culpa a oportunidade de mudar a si mesmo para melhor; 3. fazer da transitoriedade da vida um incentivo para realizar ações responsáveis14.
É possível, para o familiar do paciente crítico, encontrar sentido no sofrimento, ao transformá-lo num desafio que precisa ser alcançado, por meio de uma atitude que emerge como uma força, pela fé em Deus que se revela; crença em um milagre de Deus para a cura; crença na religião como salvação do seu familiar e nas práticas religiosas como busca de paz; e esperança na medicina para reverter à situação do familiar internado na UTI10.
Mesmo com sofrimento acompanhado por sentimentos de dor, perda e angústia, os familiares mantêm a esperança diante da situação do seu ente querido na UTI, como uma força que levaria a um pensamento positivo, que pode ser por meio de crenças religiosas e/ou palavras de carinho e perdão6.
Do sentimento de culpa do familiar do paciente crítico, aparece a possibilidade de reflexões para a mudança pelo pensamento do que poderia ter feito para evitar a doença do seu enfermo crítico, pela preocupação de deixar seu familiar sozinho no leito da UTI considerando uma traição, por considerar a situação concreta do seu familiar um castigo divino e autopunição ao ver o seu familiar na UTI e ele próprio com saúde10. São sentimentos pessoais que podem emergir do sentimento de culpa, e não cabe ao enfermeiro julgar os comportamentos do familiar, resultantes desses processos, porque a relação com seu enfermo foi vivida apenas por ele de modo particular. A culpa do familiar na UTI pode ser devido à sensação de impotência para intervir no contexto em que se encontra o seu enfermo, o que leva a impossibilidade de manter as atividades e rotinas diárias, são alterações que a hospitalização e a doença trazem ao seu cotidiano15.
Diante da eminência de morte, emergem reflexões sobre a compreensão do tema "morte" e lembranças de outras mortes, comparando-as com o sofrimento do seu enfermo, como ainda, ações de responsabilidade: de colaborar com a equipe de profissionais no que for necessário, de criar sobrinhos e filhos, de estudar e trabalhar; significando reações de comprometimento com a vida pe rante a perda do seu ente e que não estará presente nessas ações no futuro10.
MÉTODO
A experiência dos familiares dos pacientes críticos foi considerada para o desenvolvimento do guia para o processo de ajuda interpessoal ao familiar do paciente crítico. Para isso, os achados do estudo O Sentido de Vida do Familiar do Paciente Crítico, projeto aprovado pelo Conselho de Ética da instituição, conforme o registro CM-007/01 e a Resolução 196/96 das Diretrizes para Pesquisa com Seres Humanos no Brasil, serviram de norte pelos depoimentos originais revelados e compreendidos.
O estudo foi realizado na UTI de hospital geral e privado na cidade de Salvador-Brasil com seis familiares de pacientes críticos no total de uma população de 10 entrevistados, escolhidos com base nos seguintes critérios de inclusão: estar esclarecido acerca do diagnóstico e prognóstico do seu familiar; ter o seu familiar classificado como grave ou crítico; ser o familiar que mora com o paciente; ser o familiar mais presente no período de internação; concordar livremente em participar do estudo e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido.
Optou-se pela abordagem qualitativa quanto à possibilidade de apreensões possíveis de como esse fenómeno, o sentido de vida do familiar do paciente crítico, se revelaria. Para tanto, os participantes foram abordados por meio da entrevista semi-estruturada utilizando-se o gravador com questões de aproximação: você sabe o que está acontecendo com seu familiar? Como era sua vida antes do seu familiar adoecer? E, a questão norteadora: como está sua vida neste momento?16.
Produção dos dados foi por meio da análise de conteúdo de Bardin17 que consiste num método de categorização que organiza a constituição de elementos de significação da mensagem expressada. Após a leitura dos depoimentos, selecionou-se unidades de registros (frases, sentimentos, expressões), que ao serem agrupadas levando-se em conta a frequência ou ausência de significados conforme o objeto de estudo, originaram as unidades de contexto, subcategorias e categorias. A categorização possibilitou a descrição e compreensão dos significados com o emergir das categorias: o vazio existencial, a morte, a culpa, o sofrimento, o sentido de vida e a assistência ao familiar crítico.
Considerando essas categorias, as autoras desse estudo, enfermeiras com experiência em unidade de terapia intensiva, elaboraram um guia para o processo de ajuda interpessoal de enfermagem ao familiar do paciente crítico com o intuito de possibilitar o cuidado ao familiar de modo padronizado, visando auxílio humano e personalizado com significado pleno na relação entre o enfermeiro e familiar. Não se trata de um estudo para se investigar quantitativamente a evidência desse conteúdo, mas um caminho de ajuda interpessoal de enfermagem aos familiares pelo compreendido do sentido de vida dos fami liares frente à tríade trágica, subsidiado pelo conhecimento teórico-filosófico da Análise Existencial Frankliana.
RESULTADOS
O processo de ajuda interpessoal ao familiar do paciente crítico tem ações inter-relacionadas e sistematizadas centradas no cuidado ao ser humano11 e constituído pelas etapas: diagnóstico triádico, planejamento de ajuda de enfermagem, implantação de estratégias de ajuda e avaliação do processo de ajuda.
Diagnóstico triádico. Representa o primeiro passo do processo de ajuda do familiar do pa ciente crítico e visa à obtenção de dados para conhecê-lo em sua existencialidade. Nesse sentido, constitui um auxílio à reflexão sobre a aquisição e o domínio dos conhecimentos e habilidades necessários ao cuidado, para identificar as fragilidades e as possibilidades de lidar com o familiar do paciente crítico.
É no diagnóstico que se identificará a intensidade e extensões das necessidades psico-fisiológicas, psicossociais e psicoespirituais do familiar do paciente crítico e se perceberá a sua situação existencial11. Relacionando essas necessidades com a tríade trágica, verificamos a presença de necessidades afetadas pela presença na culpa de sentimentos de in segurança e impotência; na possibilidade de morte pelo luto, perda antecipada e terminalidade; no sofrimento pela falta de fé, dor, tristeza, angústia, vazio, palpitações e tremores, entre outros10.
O profissional enfermeiro, devido a sua maior disponibilidade e acessibilidade é aquele que possui mais capacidade para identificar e compreender as necessidades e dificuldades da pessoa hospitalizada e daqueles que o acompanham5,18. Inicialmente, o enfermeiro realizará a entrevista, considerando-a como um encontro existencial. Esse acontecimento exigirá o reconhecimento de que precisará preocupar-se com o seu olhar, escuta e fala, pois a sua maneira de "ser" na entrevista pode interferir no seu expressar durante o contato com o familiar11. Daí a preocupação do enfermeiro reconhecer que a entrevista precisa de características rigorosas para que o familiar do paciente crítico revele-se com uma identidade própria. O enfermeiro estará livre de qualquer idéia ou pressuposto sobre o que se revelará. Então, o encontro existencial desafia o entrevistador a "sacudir" o seu eu, pela reflexão que faz de si mesmo de como se apresentará ao outro.
Com esta preocupação, para se chegar ao diagnóstico triádico, a atitude filosófica e a intencionalidade do enfermeiro subsidiará a mudança da tríade trágica em otimismo trágico. A atitude filosófica é a assunção de uma posição filosófica a respeito da pessoa, do valor, do conhecimento e da realidade16. Ela se manifesta pelo olhar compreensivo, buscando não julgar mas entender, a partir da apreciação no modo de ser da pessoa, para a busca do conhecimento mais íntimo desta.
O colocar-se no lugar do outro, a percepção dos sentimentos, do valor e do prazer com a experiência do ser humano são um sentido para a abertura à realidade da pessoa que precisa de atenção. A intencionalidade é um pensamento voluntário, consciente e com sentido em cada atitude, permeado pela visão de buscar possibilidades para aquilo que se poderia ser, não sendo valorativo à solução dos problemas a partir das suas causas, mas, da aceitação desses sem questionamento, tirando proveito da tentativa de perceber o melhor deles19. Após a entrevista e de posse da análise das informações obtidas, o enfermeiro vai para o passo seguinte, que é o da identificação de configurações de sentido, ou seja, das condições que justifiquem o porquê e o para quê da existência do familiar do paciente crítico naquele momento, ajudan-do-o a encontrar o sentido de seu sofrimento (porquê) e a compreender a razão da sua existência (o para quê ou para quem viver).
Planejamento de ajuda de enfermagem ao familiar do paciente crítico. De posse do diagnóstico, o enfermeiro fará o planejamento de ajuda de enfermagem ao familiar do paciente crítico, a partir da compreensão da concretude vivida pelo familiar, estabelecendo estratégias para que as necessidades psicobiológicas, psicossociais e psicoespirituais identificadas sejam atendidas, como exemplo: promoção de sentimentos positivos, despertando-o para que ele seja capaz de pre encher o vazio no qual se encontra; apresentação de mensagens de otimismo, esperança, fé e amor; estímulo à transformação da tríade trágica em otimismo trágico; apresentação de opções de valores criativos, vivenciais e atitudinais. O planejamento possibilitará a compreensão das preocupações, desventuras e temores ao qual o familiar do paciente crítico está exposto, ao mesmo tempo que será um desafio para o enfrentamento da situação do seu enfermo crítico.
Implantação de estratégias de ajuda. O ser humano, ao conviver com uma situação de sofrimento, tem o destino a lhe exigir uma escolha, como uma resposta pessoal que o mobilizará para o enfrentamento de um desafio. Permitir que o ser humano perceba possibilidades concretas para ordenar a sua vida no sofrimento, dentro de um contexto positivo, é o encontro de atitude para um sentido na tragicidade, em outras palavras, seria mostrar-lhe o porquê, e o mais ele próprio encontrará o caminho20. A implantação das estratégias de ajuda consiste na prática do planejamento com a execução das estratégias de ajuda, constituído de um roteiro diário das necessidades psicofisiológicas, psicossociais e psicoespirituais identificadas no diagnóstico com as intervenções sob coordenação do enfermeiro11. O enfermeiro pode ajudar ao familiar ao encontro de um caminho para possibilidades de sentido para atender as suas necessidades afetadas a partir da implementação de estratégias de apoio no enfrentamento da tríade trágica.
Avaliação do processo. A avaliação de enfermagem, também nomeada de evolução de enfermagem, consiste no relato diário das mudanças ou respostas sucessivas que ocorrem no ser humano sob o cuidado prestado11. O atendimento de enfermagem ao familiar do paciente crítico deve ser avaliado pelo enfermeiro em todos os momentos, ten do em vista que as etapas do processo, com as estratégias de ajuda de enfermagem, não são estáticas, e podem ser ajustadas a depender da situação particular vivenciada pelo familiar na relação ou não com o paciente crítico, com os profissionais da equipe de saúde e/ou percebida/vivida pelo enfermeiro.
GUIA PARA O PROCESSO DE AJUDA INTERPESSOAL DE ENFERMAGEM AO FAMILIAR DO PACIENTE CRÍTICO
A construção do diagnóstico triádico e plano de ajuda farão o enfermeiro apreender a singularidade do ser familiar do paciente crítico, como um enlace do vivido que será, atentivamente, percebido na medida em que o familiar se revelar abrindo caminhos para possibilidades de ajuda, especificamente, a transformação da tríade trágica em otimismo trágico. O descortinar dessas potencialidades seriam valores vivenciais, ou seja, caminhos de sentidos para a sua própria existência12.
As interrogações, como por que viver?
Para quem é importante viver? Para que viver? podem ser entendidas por meio das con figurações de sentido nas falas dos familiares dos pacientes críticos. As configurações de sentido são resultado da vontade de sentido ou desejo de sentido ou motivação primária, definida como o interesse do ser huma no pelo significado da sua vida, e surge independente das dificuldades da vida, como uma busca para o encontro de sentimentos positivos13.
As atitudes de ajuda para implementar a estratégia de apoio, é direcionada pela compreensão da situação do familiar e ajuda ao lidar com o vazio existencial, também nomeado de vazio interior, aparece na ausência de um conteúdo pessoal, uma vontade de sentido ou conteúdo de sentido frustrada com perda de sentido da existência13.
A avaliação do processo de ajuda interpessoal de enfermagem ao familiar do paciente crítico é necessária para que se aprecie a efetiva aplicabilidade ao familiar do paciente crítico com o intuito de tornar o momento de estar junto do seu ente na UTI pleno de sentido de vida e marcante por toda a sua existência.
CONCLUSÕES
É importante que o enfermeiro e sua equipe se reúnam periodicamente para discutir as estratégias de cuidados utilizadas, as atitudes tomadas, as respostas das pessoas envolvidas nessa relação de ajuda e assim, refletir sobre o alcance das metas quanto à transformação da tríade trágica em otimismo trágico.
O apoio para o familiar do paciente crítico não consiste numa ajuda para simplesmente agradá-lo, mas para que ele possa transpor a condição de vivência na tríade trágica para a de otimismo trágico para a meta da resiliência. Dessa maneira, estimular-se-á o despertar da consciência pela apreensão dos valores expressos de maneira positiva, nas atitudes frente aos sentimentos de sofrimento, culpa e possibilidade de morte.
Conhecer os conteúdos de sentido, ao cuidar do familiar do paciente crítico, poderá auxiliar o enfermeiro a desenvolver suas ações, considerando esse familiar em suas dimensões humanísticas, existenciais e pessoais. Dos resultados da atenção de enfermagem ao familiar do paciente crítico podem emergir forças pessoais e espirituais que levam a resiliência.
Observa-se que a utilização de procedimentos não materiais, a exemplo do estímulo à profissão de fé evidencia a eficácia da terapêutica do paciente crítico e das forças que levam à expressão de conteúdos de sentido.
A ideia de usar recursos subjetivos e a afe-tividade intencionalmente só será possível pela motivação dos enfermeiros, no desejo de melhor cuidar, atentos ao guia, com disponibilidade por parte das direções institucionais nos recursos e ambiência para efetivação do processo.