INTRODUÇÃO
A Tuberculose (TB) é considerada uma das doenças infectocontagiosas com mais altos índices de adoecimento em vários países e destaca-se como aquela que mais mata no mundo. Esta doença, a qual muitos associam ao passado, encontra-se atualmente em franca expansão, atingindo principalmente os segmentos mais pobres, os vulneráveis, os marginalizados1.
O controle da TB permanece como um sério desafio, embora a mesma seja uma doença curável. Nesse sentido, as dificuldades para o seu controle voltam-se aos constituintes organizacionais dos serviços de saúde e do próprio comportamento humano2, incluindo, neste aspecto, doentes e profissionais de saúde.
Reconhece-se que nos países em desenvolvimento, além dos desafios relacionados às posturas das pessoas adoecidas, as desigualdades e carências sociais, o aumento da pobreza, o crescimento desordenado das cidades e da população associados à falta de acesso aos serviços de saúde, dificultam o controle e o manejo da tuberculose, assim como a adesão ao seu tratamento3,4.
Na tentativa de explicar a baixa adesão ao tratamento, evidenciada por altos índices de abandono, diversos fatores tem sido relatados, tais como: uso de álcool; interrupção de benefícios, tratamento autoadministrado, falta de suporte familiar, fragilidade no vínculo entre doente e profissional e ausência de trabalho em equipe nos serviços de saúde5,6. Concorrem ainda para o aumento deste índice, tornando cada vez mais complexo o problema do abandono do tratamento da TB: o uso de drogas, as situações de vulnerabilidade social e a falta de acesso à informação7.
É importante destacar que a TB é uma das doenças consideradas prioritárias na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) brasileira e, desde o ano de 2006, o Ministério da Saúde (MS) tem intensificado a descen tralização das ações de diagnóstico, controle e tratamento da doença para os serviços da Atenção Básica (AB)8, pois é nesse nível de atenção que deve ser oferecido todo o cuidado ao doente de TB. Na AB a Estratégia de Saúde da Família (ESF) é estruturante dos sistemas municipais de saúde, por remodelar a assistência à saúde e promover uma dinamicidade nova na organização dos serviços e ações, neles incluídas as medidas para o con trole da TB9,10.
Apesar de significar um avanço, os desafios do processo de descentralização das ações de controle da TB são significativos, principalmente no que concerne à fragmentação de regimes de tratamento decorrendo em maiores dificuldades para realizar o Tratamento Diretamente Observado (TDO)11,12.
João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, é considerado um município prioritário para o controle da doença pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT). No ano de 2014 este municipio apresentou um coeficiente de incidência de TB por todas as formas de 35,7/100.000 habitantes, um coeficiente de mortalidade de 2,7/100.000 habitantes e percentual de abandono de 18,6% 13. Vale ressaltar que neste município a taxa de abandono é superior a recomendada pela OMS, o que realça o conceito-análise tratado neste artigo, ou seja, a adesão ao tratamento da TB.
Mesmo existindo dificuldades para manter o doente em tratamento, em Unidades de Saúde da Família (USF) do município de João Pessoa, tem se observado experiências exitosas, levando a pessoa acometida por TB a obter alta por cura, apesar de suas condições e comorbidades que concorrem para o abandono da terapêutica. Tal fato inquietou os presentes autores a buscar resposta ao seguinte questionamento: Que sentidos revelam os discursos de pessoas adoecidas por TB em relação aos fatores que favorecem a adesão do tratamento nas USF?
Uma vez que, pela a análise de discurso (AD), procura-se compreender a língua fazendo sentido14, este estudo teve como objetivo identificar, por meio do discurso de pessoas acometidas por TB e assistidas em USF, fatores e significados favorecedores da adesão ao tratamento.
MÉTODO
Pesquisa qualitativa que utiliza como referencial teórico-analítico a Análise de Discurso (AD), dispositivo que concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social, tornando possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade na qual ele vive14.
Contribuíram com o estudo 8 (oito) pessoas que foram acometidas por TB pulmonar e que iniciaram e concluíram o tratamento em USFs do município de João Pessoa, obtendo a cura como desfecho terapêutico. A identificação e localização dos sujeitos foram possíveis por meio dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
Os sujeitos foram caracterizados por pseudónimos que se referem a personagens da história e da ficção que foram acometidos pela TB. A escolha dos codinomes para cada sujeito foi baseada em alguma característica da vida de ambos que se assemelhassem. Os pseudónimos selecionados foram: Martins Fontes, um morador de rua solitário e etilista, entrevistado 1; Barbosa de Freitas, jovem casado, boêmio, etilista e fumante, entrevistado 2; Rainha Vitória da Suécia, mãe solteira, cuidou da filha Marguerite quando doente de TB, entrevistado 3; Marguerite (A dama das Camélias) jovem boêmia, criada apenas pela mãe, entrevistado 4; Noel Rosa. boêmio etilista e fumante, entrevistado 5; Katherine Mansfield, jovem estudante que conviveu com dificuldade de relacionamento afetivo com a mãe, entrevistado 6; Manoel Bandei ra, boêmio, etilista e fumante, entrevistado 7; Modigliani, jovem boêmio, etilista e usuário de drogas ilícitas, entrevistado 8.
Para coleta das informações foi utilizada a técnica da entrevista em profundidade, a qual foi realizada nos meses de agosto e setembro de 2012, com o auxílio de um equipamento de gravação de áudio.
O estudo foi autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa e aprovado em 27 de julho de 2011 pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba CCS/UFPB, conforme protocolo N° 0113/2011, atendendo às orientações sobre as pesquisas que envolvem seres humanos contido na resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)15.
A proposta metodológica do dispositivo da AD16 propõe três perguntas heurísticas para o processo de análise do corpus discursivo. A primeira refere-se à definição do conceito-análise, a segunda diz respeito à formulação do sentido desse conceito-análi-se por meio da textualização e de suas marcas textuais ou linguísticas e a terceira e última pergunta busca relacionar o sentido construído com formações discursivas e ideológicas16.
Nesse estudo, o conceito-análise definido foi "Adesão ao tratamento da Tuberculose", esse conceito se sustenta por meio das marcas textuais que se expressam no corpus discursivo construído a partir dos discursos do doente de TB.
A partir da verificação da recorrência das marcas textuais, agrupamento das mesmas e a construção de enunciados de base, emergiram duas formações discursivas (FD's): a primeira denominou-se "Cuidado dos profissionais e o vínculo estabelecido com o doente favorecem à adesão ao tratamento da TB" e a segunda "Cuidado dos familiares favorece à adesão ao tratamento da TB".
RESULTADOS
O quadro 1 contempla o agrupamento das marcas textuais recorrentes analisadas, o enunciado de base construído, bem como as duas formações discursivas que nortearão a discussão do conceito análise proposto.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A utilização dos serviços representa a funcionalidade dos sistemas de saúde e o processo de utilização desses é resultante da interação do comportamento do indivíduo, que procu ra cuidados, e a do profissional que o conduz pelo interior do sistema. Os profissionais, em sua função, devem garantir a intensidade e o tipo de recursos consumidos para resolver os problemas de saúde das pessoas adoecidas17.
Em se tratando da oferta de cuidado na ESF, os cenários, os sujeitos e as linguagens apresentam intenso potencial para reconstrução das práticas no âmbito da atenção à saúde. Para um cuidado fundamentado no princípio da integralidade, o usuário deve ser o protagonista, mas pressupondo a presença ativa do outro, neste caso do profissional de saúde18,19. A ESF tem a lógica de produ ção do cuidado e direciona-se, também, pelo cumprimento das dimensões do que se defi ne como acesso e vínculo20.
Na ESF o contato constante com o território, a integração de práticas preventivas, educativas e curativas mais próximas da vida cotidiana da população e, principalmente, dos grupos mais vulneráveis, pode vir a ampliar o acesso aos recursos diagnósticos/ terapêuticos e promover a construção de vínculos entre profissionais e pessoas com TB21,22. Na AB o cuidado prestado por profissionais que compõem as equipes de saúde faz com que sejam criados vínculos de co-responsabilidade, o que facilita a identificação dos problemas de saúde da comunidade e, consequentemente, o envidamento de respostas23.
As marcas textuais que sustentam a pri meira FD "Cuidado dos profissionais e o vínculo estabelecido com o doente favorecem à adesão ao tratamento da TB", explicitam esse atendimento fortalecido com o vínculo e o cuidado, sendo os elementos essenciais para a continuidade do tratamento da TB como pode ser observado na marca textual extraída do discurso de Martins Fontes: "(...) todo dia eu tinha que ir na casa de S. (ACS) pegar os comprimidos... Eu era bem recebido... tomava o remédio na casa dela, no copo dela(...)".
O profissional referenciado nesse cuidado (S.), tratava-se da Agente Comunitário de Saúde (ACS). É evidente que a atenção oferecida pela ACS no acompanhamento da tomada do medicamento de Martins Fontes influenciou sua adesão ao tratamento, o dito "tomava o remédio na casa dela, no copo dela" pode significar como as pessoas acometidas pela TB sofrem preconceito e são excluídos do simples convívio social e das atividades diárias como compartilhar utensílios, explicitando o quanto a atenção da ACS foi importante para promover o aceite do trata mento pelo sujeito.
Assim, observa-se que a inserção do ACS envolve um conceito que, sob as mais dife rentes formas, nomenclaturas e racionalidades, aparece em várias partes do mundo, ou seja, a ideia essencial de elo entre a comunidade e o sistema de saúde. E, para tanto, a importância e necessidade de construção de vínculo. O vínculo permeia o trabalho do ACS e potencializa sua responsabilização com a saúde das famílias24.
Na perspectiva do que foi dito por Martins Fontes a respeito do que ele necessitava, cuidar em saúde está associado à perspectiva de se prestar atenção ou dirigir intervenções a um indivíduo ou a um grupo de maneira a envolver um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um determinado tratamento25. O não dito aponta o cuidado no sentido mais amplo, como sinónimo do termo desvelo, definido como o "cuidado e vigilância contínua", diligência, zelo e solicitude25.
O profissional de saúde se posiciona frente ao outro no ato de cuidar, constituindo-se assim um grande desafio ao nosso entendimento o colocar-se em movimento na inter-relação de um encontro de faces26.
Estudos comprovam que se deve atribuir como prioridade no processo assistencial, além da supervisão da medicação, a melhoria da relação entre o usuário e o trabalhador da saúde. Deve-se, portanto, ser estabelecido o vínculo, fator que traz aspectos importantes como valorização de queixas, subjetividades, comunicação social, relação de escuta e de empatia com o usuário27.
As marcas textuais abaixo corroboram com a posição dos autores acima27, revelando que um dos elementos importantes do referido serviço de saúde para o fortalecimento à adesão ao tratamento da TB, foi a atenção e o cuidado dos profissionais:
"(...) o incentivo (...) da enfermeira, da médica e também da Agente de saúde, me ajudou muito a querer continuar até o fim, todas tinham um cuidado especial comigo." Barbosa de Freitas. "A enfermeira era sempre muito cuidadosa, ali ás, todos de lá são, mas ela quem me acompanhou, a que fez tudo, quem pedia exames era ela." Marguerite.
"(...) Quem ficou mais próximo de mim foi a enfermeira... ela que fazia o acompanhamento dos remédios (...)" Manoel Bandeira.
Para a AD o trabalho simbólico do dis curso está na base da produção da existência humana14. No cuidado referido nos discursos acima, evidencia-se, na perspectiva do simbólico, a importância do enfermeiro, uma vez que várias marcas textuais apontam este profissional como o que mais se aproxima e oferece atenção à pessoa adoecida por TB. Nas equipes da ESF geralmente é o enfermeiro quem acompanha o doente durante o tratamento. Vale ressaltar que o enfermeiro no Brasil está presente desde as primeiras ações de saúde pública voltadas para o controle da doença28, conferindo-lhe especial destaque29,30, o que sem dúvida o fortalece simbolicamente na história da saúde, como um agente vinculado ao cuidado do paciente acometido por TB.
Neste estudo o dito revela a participação do enfermeiro na adesão ao tratamento, confirmando assim, a sua importância no núcleo de profissionais que inclusos no processo de trabalho da Equipe de saúde da Família, destacam-se como protagonistas na história das ações de controle da TB e com o compromisso com o cuidado ao doente deste agravo31, acentuando-o, assim, significativamente como um profissional fundamental para o efetivo controle da doença.
Em relação ao vínculo, este pressupõe a existência de uma fonte regular de atenção, e seu uso ao longo do tempo requer o estabelecimento de fortes laços interpessoais que reflitam a cooperação mútua entre as pessoas da comunidade e os profissionais de saúde20. E, quando se trata do controle da TB, ou do fortalecimento da continuidade dos usuários ao tratamento, constitui-se como um dos principais elementos estruturantes, uma vez que permeia atributos como a res ponsabilização, a integralidade e a humanização27.
Em relação à segunda FD, "Cuidado da família favorece à adesão ao tratamento da TB", é importante destacar que os benefícios concedidos pelas redes de apoio a usuários que fazem ou que precisam iniciar tratamentos medicamentosos em muitos casos garantem a adesão à terapêutica. As marcas textuais mais evidentes mostram que o apoio dos familiares fortaleceu esta etapa importante para obter a cura da doença.
"(...) Os exames acusaram essa doença... Mas, de jeito nenhum minha família virou as costas para mim graças a Deus, pelo contrário, me deram muita força, me deram muito apoio, ficaram aqui comigo(...)" Marguerite. "(...) a minha filha cuidava de tudo, para eu ter uma alimentação melhor, mais adequada, para eu poder recuperar o peso perdido." Noel Rosa. "(...) Foi a minha esposa... ela quem me influenciou. Na verdade eu agradeço tudo a ela porque...Foi por causa dela que eu fui fazer os exames (...)minha avó nunca deixava faltar nada não, para eu me alimentar bem, sempre deixava alguma coisa pronta para mim (...)" Modigliani.
Nenhuma pessoa vive no mais completo isolamento, sem ser influenciada pelo meio em que vive e pelas pessoas que a rodeiam32. A família é um sistema interligado e cada um de seus membros tem influência sobre o outro, sendo que o adoecimento de um dos integrantes tem reflexos no comportamento e no estado emocional e até biológico dos demais33.
A análise das marcas textuais que compõe esta formação discursiva revelam os significados atribuídos em relação à importância da família na manutenção do tratamento pelo usuário, a família consegue identificar necessidades, sofrimentos, sentimentos de e apoio. O afeto familiar permite que o sujeito doente tenha estabilidade para lutar contra a doença, ajuda-o a conseguir suprir suas carências emocionais e a aceitar a situação de encontrar-se adoecido, contribuição na adesão e continuidade nos tratamentos33. Neste sentido, durante o tratamento e a reabilitação do doente de TB, o apoio que os familiares, amigos ou redes de apoio prestam, é de fundamental importância, pois contribuirá de forma positiva na adesão ao tratamen to, manutenção e obtenção da cura.
Sabe-se que a adesão ao tratamento da TB relaciona-se diretamente ao conhecimento do doente acerca de sua doença, da sua responsabilidade consigo, sua capacidade para autocuidado e o seu desejo de se curar. No entanto, além disso, o sucesso da adesão está ligado ao apoio da família34.
Portanto, sendo perceptível que o apoio das redes, como a família, constitui fator que potencializa a adesão ao tratamento da TB, como mostram os discursos, os profissionais de saúde devem estar atentos e dispostos à inclusão/participação de familiares, tanto no cuidado ao usuário, quanto no planejamento e execução do plano de cuidados.
Sobre a posição dos sujeitos em relação à concepção de cuidado, esta se filia à perspectiva da integralidade, quando relacionada a práticas de saúde35. Ou seja, quando os sentidos se referem aos encontros entre equipe de saúde e as pessoas que demandam cuidado, de modo que os projetos terapêuticos surjam do diálogo entre profissionais de saúde e os usuários que buscam os serviços de saúde. Ressalta-se que a capacidade de compreender o contexto específico dos diferentes encontros é a característica chave para a existência desse diálogo. Assim, nas práticas de cuidado, singularidades e subjetividades das pessoas adoecidas devem ser consideradas, de modo que os profissionais possam elaborar projetos terapêuticos embasados em seus conhecimentos e naqueles trazidos pelo outro a partir de seus sofrimentos, de suas expectativas, de seus temores e de seus desejos35.
Na presente pesquisa os discursos revela ram que a forma como a pessoa com tuberculose é cuidada por profissionais de saúde e familiares é determinante para a adesão e continuidade do tratamento. Neste sentido, destaca-se, em relação ao profissional, o vínculo estabelecido na relação de cuidado, a não demostração de estigma e/ou preconceito, que são interpretadas pelos sujeitos como atitudes de acolhimento. Na USF o enfermeiro sobressai-se como o profissional mais atuante no processo terapêutico.
No sucesso alcançado pelos sujeitos em aderirem e concluírem o tratamento, além dos profissionais de saúde, os discursos revelaram ser importante apoio da família. Interpreta-se que o afeto familiar colabore para que a pessoa doente se fortaleça para enfrentar a doença, aderir e manter-se firme em relação ao tratamento.
Conclui-se, portanto, que nos serviços da AB, notadamente nas USF, a forma como os profissionais acolhem os doentes de TB -principalmente o enfermeiro- bem como o apoio dos familiares, são fatores decisivos para a conduta em relação ao tratamento. Quanto à concepção que interpela os sujeitos em relação ao cuidado, depreende-se que os discursos evocam sentidos relacionados à integralidade no que concerne a organização das práticas vinculadas ao cuidado em saúde.