INTRODUÇÃO
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido como um grupo de condições de déficit do desenvolvimento que afetam o funcionamento pessoal, social, académico ou profissional, configurando o núcleo do transtorno, que possui gravidade de apresentação variável1,2. Quanto à ocorrência, dados mostram que, nos Estados Unidos, em 2023, uma em cada 36 crianças com 8 anos de idade possuíam TEA, totalizando 226 mil crianças, um quantitativo 22% maior que os dados divulgados em 20213. Já na realidade brasileira, até o momento não há dados oficiais sobre a prevalência do TEA.
O transtorno é de desenvolvimento complexo, caracterizando-se pela necessidade de rotina, ausência ou dificuldade de comunicação oral, movimentos estereotipados, déficit na capacidade de se relacionar, interesse particular por atividades específicas e padrões de comportamento repetitivos, complexidades que exigem cuidados especializados e dedicação integral do cuidador4.
Ainda a respeito das complexidades envolvidas, crianças com TEA possuem maior prevalência de comorbidades, resultando em maior utilização dos serviços de saúde, para realização de terapias, consultas ou atendimento de emergência e hospitalizações4. Essas comorbidades incluem comprometimento gastrointestinal, distúrbios metabólicos, comprometimento imunológico, disfunção hipotálamo-hipófise-adrenal, disfunção motora e disfunção sensorial5. Consequentemente, familiares dessas crianças enfrentam diariamente situações de estresse para atender às demandas destas, devido à gravidade e cronicidade da condição, às comorbidades, aos momentos de crises e às inúmeras dificuldades no acesso aos serviços especializados e diagnósticos6.
Os desafios rotineiramente enfrentados foram potencializados pela pandemia de Covid-19, que exigiu adequação das unidades de saúde para manter o distanciamento social e prevenir a contaminação. As mudanças alteraram a rotina das crianças e famílias e dificultaram o acesso às terapias, impactando nos domínios afetados pelo TEA, como comportamento, comunicação, socialização e autonomia7.
Em pesquisa realizada no Chile durante a pandemia, 45% dos pais de crianças com TEA afirmaram que as dificuldades comportamentais aumentaram em intensidade ou frequência devido às mudanças de rotina8. Por sua vez, a revisão sistemática que investigou os impactos da pandemia de Covid-19 em crianças e adolescentes com TEA identificou principalmente alterações no comportamento, com aumento de ansiedade, irritabilidade, hiperatividade, estresse e agressividade, além de alterações no padrão de sono9.
Nesse contexto, as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) emergiram como pontos de referência para o atendimento da exacerbação dessas comorbidades10. Caracterizadas por uma média complexidade, operam 24 horas, todos os dias da semana, e adotam um sistema de acolhimento com classificação de risco, priorizando o atendimento com base na gravidade11. No contexto da atenção à saúde, um estudo de coorte com crianças com TEA atendidas em UPAs nos Estados Unidos identificou que, dentre os motivos para a procura de atendimento, 51% foram clínicos, 18%, psiquiátricos e 16% por lesões ou traumas, tendo sido os exames mais solicitados os de urina, sangue e radiografias12.
Para a criança com TEA que, segundo lei federal, é uma pessoa com deficiência13, é essencial considerar suas necessidades, tanto durante a espera quanto no momento do atendimento em uma UPA, com abordagem específica para comunicação e realização de procedimentos, tendo a família como elo para estabelecer essa relação, fortalecendo o cuidado e a resolutividade da condição de saúde e minimizando os impactos que esse atendimento pode causar na criança11.
Diversos fatores podem comprometer adversamente o atendimento, como a falta de conhecimento da equipe sobre como abordar a criança com TEA, a não inclusão dos pais no cuidado, a comunicação insuficiente e o ambiente inadequado, caracterizado por ruídos e falta de aspectos lúdicos14. A atenção a esses aspectos é crucial para assegurar um atendimento eficaz e sensível às necessidades específicas desse público, proporcionando um ambiente mais acolhedor e adaptado.
Considerando os efeitos da pandemia na vida, saúde e atendimentos de crianças com TEA e suas famílias, este estudo tem como objetivo descrever o impacto da pandemia de Covid-19 no atendimento às crianças com Transtorno do Espectro Autista nos serviços de urgência e emergência.
MATERIAL E MÉTODO
Tipo de estudo: Trata-se de um estudo de casos múltiplos com abordagem qualitativa, de caráter descritivo15, fundamentado no referencial teórico de resiliência familiar de Froma Walsh16.
Cenário e participantes: O cenário do estudo foi o ambiente virtual, tendo sido as famílias recrutadas por meio de divulgações em redes sociais virtuais, além da utilização do método bola de neve. Participaram do estudo 14 famílias que atenderam aos critérios de inclusão, a saber: ser familiar de crianças com TEA com até 10 anos de idade, diagnosticadas há pelo menos três meses e que frequentaram o serviço de urgência e emergência durante a pandemia de Covid-19. Os critérios de exclusão foram: ser familiar menor de idade na data da entrevista e apresentar dificuldades de comunicação por motivo de língua estrangeira ou questões biológicas/cognitivas.
Recolecção de dados: Todas as entrevistas foram conduzidas de forma on-line, após contato prévio e convite de participação, respeitando a preferência das famílias pela mídia de sua afinidade; a escolha majoritária foi pelo WhatsApp®, tendo apenas dois participantes optado pela plataforma Google Meet®.
A coleta de dados foi realizada por mestrandas, sob supervisão da pesquisadora principal, com experiência em pesquisa qualitativa, entre os meses de janeiro de 2022 e abril de 2023, por meio de entrevista semiestruturada. O instrumento de coleta de dados para a entrevista, elaborado pelas pesquisadoras, incluía um roteiro com questões socioeconómicas para identificação da família e questões referentes às experiências durante o atendimento nos serviços da rede de urgência durante a pandemia, com notas de campo no momento da entrevista.
Todas as entrevistas foram gravadas em vídeo e posteriormente transcritas na íntegra. A duração delas variou entre 21 e 83 minutos, algumas vezes contando com a presença das crianças, de modo que houve interrupção devido à rotina delas. Como critério de saturação dos dados para interrupção da coleta, foram consideradas a repetição de temas e a ausência de novas informações, categorias ou temas para responder à pergunta de investigação: qual a percepção das famílias sobre o atendimento as crianças autistas nos serviços de urgência e emergência durante o período da pandemia COVID-19? 17.
Calidad y rigor metodológico: A confirmabili-dade se deu por meio do uso de instrumentos de coleta de dados confiáveis, em uma população apropriada a representar o fenômeno investigado e do processo de análise, buscando certo grau de neutralidade. O critério de con-fiabilidade foi atendido no processo de análise com discussões entre as pesquisadoras, verificando similaridades, diferenças e reciprocidade possíveis ao explorar os dados em profundidade. O critério de credibilidade foi estabelecido por meio da triangulação com a produção teórica sobre o tema, sustentando com diferentes pontos de vista para interpretar o conjunto de dados. No processo de análise dos dados, sendo a categorização realizada por duas pesquisadoras que compararam os resultados, chegando a um consenso acerca das categorias empíricas.
Análise dos dados: Foi conduzida mediante aplicação da técnica "tratando seus dados a partir do zero" e da técnica analítica de síntese cruzada de casos15. Para organização, armazenamento e análise dos dados, utilizou-se o Web Qualitative Data Analysis Software (WebQDA®), versão 3.0, que fornece suporte on-line e proporciona maior facilidade para discussão das categorias, contribuindo para uma análise eficaz.
Aspectos éticos: O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa no Âmbito das Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, sob Parecer n° 4.693.312 e Certificado de Apresentação Ética 42177821.1.0000.0102, seguindo todos os preceitos éticos constantes da Resolução CNS n° 466/2012, que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos. As entrevistas ocorreram após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, para preservação do anonimato dos participantes, na apresentação dos resultados, foi utilizada a letra E, acompanhada por números ordinais, referentes à sequência de inclusão das famílias na pesquisa.
RESULTADOS
Características dos participantes: Participaram do estudo 14 mães, com idade entre 27 e 46 anos (média de 36 anos). A maioria das crianças era do sexo masculino (71,4%), com diagnóstico de TEA em média aos 3 anos de idade; quando se trata das meninas, a média do diagnóstico subiu para 4 anos. Em relação à educação, três crianças não frequentavam a escola.
Sobre os motivos para a procura da urgência e emergência, a maioria foi motivada por sintomas gripais, como tosse, febre e dor de garganta; algumas famílias buscaram atendimento mais de uma vez por sintomas gripais. Também foram identificadas duas procuras por corpo estranho, uma por crise sensorial, uma por queda e uma que teve diagnóstico de dengue. Ressalta-se que apenas quatro crianças (26,7%) testaram positivo para Covid-19.
Categoría emergente e subcategorías (Quadro 1): A análise dos dados revelou uma categoria emergente, denominada "impacto da pandemia" que aponta para os elementos que as famílias perceberam como alterações na rotina do atendimento de urgência e emergência provocadas pela pandemia, bem como sentimentos e atitudes adotadas decorrentes do efeito da pandemia em seu cotidiano.

Quadro 1 Análise temática das respostas que as famílias perceberam na rotina do atendimento de urgência e emergência provocadas pela pandemia, Curitiba, Paraná, Brasil, abril 2023.
A Figura 1 expressa os sentimentos dos pais para definir sua experiência com a pandemia frente ao desafio de necessitar de atendimento de urgência e emergência para os filhos com TEA. O tamanho das palavras "pandemia", "covid", "diferença" e "medo" representa a intensidade desses elementos na vivência desse período para esses familiares e seus filhos.
DISCUSSÃO
As famílias de crianças com TEA enfrentam desafios rotineiramente, visto que os indivíduos com o transtorno demandam recursos sociais e de saúde específicos. Há, ainda, situações em que ocorrem colapsos nervosos, desconforto físico ou emocional. Esses comportamentos se tornam notórios quando há alterações diárias na rotina, como ocorreu na pandemia de Covid-19 e principalmente, às crianças que precisaram de atendimento dos serviços de urgência e emergência18.
No momento em que as crianças com TEA são atendidas nos serviços de urgência e emergência, elas são bombardeadas com sobrecargas sensoriais na forma de luzes brilhantes, sons elevados, novas experiências táteis e interpessoais, mudando completamente sua rotina, ambientação e interações físicas, fazendo com que elas rapidamente se sintam superestimuladas19).
A pandemia afetou todos os grupos da sociedade, tendo sido as pessoas com deficiência intelectual e mental especialmente vulneráveis aos seus efeitos físicos, mentais e sociais. No caso dos indivíduos com TEA, eles geralmente preferem contextos familiares e previsíveis e podem responder a mudanças abruptas e rupturas de rotinas com alterações emocionais mais elevadas de ansiedade ou estresse20.
Embora o isolamento tenha sido uma medida preventiva necessária, um estudo inglês sobre o impacto psicológico da pandemia relatou que ela produziu efeitos psicológicos negativos, com evidência de sintomas de estresse pós-traumático, confusão e raiva. Não obstante haver uma história psiquiátrica preexistente, parece prever um resultado pior e maior necessidade de apoio durante o isolamento21,22.
Considerando as implicações do isolamento imposto pelas autoridades sanitárias, a Sociedade Brasileira de Pediatria23 destacou a preocupação com o estresse tóxico produzido pelo confinamiento no público infantil de maneira geral. Esse fenómeno foi apontado como potencial desencadeador de distúrbios do sono, baixa imunidade, atraso no desenvolvimento, depressão e baixo desenvolvimento escolar, características inerentes ao quadro clínico de TEA, que tendem a se agravar com o isolamento.
Sob outro ponto de vista, o momento pandêmico, somado à utilização dos serviços de urgência e emergência pelas crianças com TEA, poderia ter sido propício para o crescimento familiar, uma vez que despertou sistemas direcionados para o enfrentamento de adversidades, mudança de padrões e estímulo para melhora da comunicação e solução de problemas. Recorda-se, nesse sentido, que a resiliência abrange um conjunto de condições satisfatórias que a família tem de manejar para sobressair de circunstâncias traumáticas, concebendo um significado de crescimento e transformação pessoal em diversas situações e desafios16.
Com base no referencial teórico de resiliência de Froma Walsh16, identificou-se que os familiares buscaram suporte em terapias, medicamentos e atendimentos de urgência para mitigar as crises relacionadas à saúde mental das crianças. No entanto, os dados deste estudo mostraram que poucas famílias operaram a resiliência dentro dos níveis citados por Walsh16.
Em recente revisão da literatura acerca da resiliência em famílias de crianças autistas, autores canadenses reiteraram que ela tem sido associada a muitos resultados positivos, como maior bem-estar psicológico e satisfação com a vida, gestão e melhor enfrentamento de adversidades e menor quadro de depressão, ou seja, essas famílias estão mais protegidas da exposição a estresse e ansiedade24.
Ao analisar as falas das mães referentes ao atendimento nos serviços de urgência e emergência, destacou-se a percepção de pouca mudança no atendimento de forma geral nesse período, sendo esse resultado reforçado pelos achados de uma pesquisa realizada na Itália com pais de crianças com TEA acerca do impacto da pandemia21. Os autores indicaram que o maior impacto percebido pela maioria dos indivíduos e suas famílias foi a gestão das dificuldades diárias e a exacerbação dos sintomas relacionados ao comportamento, uma vez que esses jovens estão em risco devido à sua vulnerabilidade a eventos imprevisíveis21.
Essas observações também foram citadas por cientistas de Nova Lorque, que investigaram os determinantes na satisfação dos pais nos cuidados de urgência e emergência a pacientes com autismo, concluindo que o principal determinante era a habilidade interpessoal de comunicação entre equipe e paciente, seguido do tempo de espera e das medidas tomadas para amenizar as intempéries ambientais, como estímulos sonoros e luminosos25.
Recente pesquisa realizada no Canadá, também referente ao atendimento em urgência e emergência de crianças com autismo, identificou que os principais impasses enfrentados incluem a falta de conhecimento da equipe sobre o TEA, desatenção à experiência dos pais, comunicação insuficiente, orientação familiar insuficiente no momento da emergência, ambiente inacessível e falta de recursos14.
Logo, os desafios citados pelos pais neste estudo somam-se ao encontrado na literatura, ressaltando que a pandemia aflorou sentimentos de insegurança e medo nas famílias de crianças com TEA ao procurar os serviços de urgência e emergência, revelando a necessidade de acolhimento e inclusão da família no cuidado, assim como maior treinamento das equipes e ofertar ambiência dos locais de atendimento a esses pacientes.
Este estudo apresenta como limitação a divulgação através das redes sociais, abrangendo um perfil de familiares com características semelhantes. Alguns cuidadores de crianças com TEA, como os idosos, possuem limitações nas habilidades com as redes virtuais, ficando excluídos da pesquisa.
CONCLUSÃO
Nesta pesquisa, os achados revelaram que a pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social potencializaram os sentimentos de estresse vivenciados por famílias e crianças com TEA ao terem suas rotinas diárias alteradas, intensificando as crises mentais e agressividade nas crianças, além de provocar sentimentos de medo e estresse familiar.
Portanto, é importante ampliar o olhar para a implementação de estratégias de prevenção e intervenção precoce em saúde mental, visando à resiliência das famílias de crianças com TEA e outros transtornos, que necessitam de acompanhamento contínuo de saúde e educação.
Cabe ao governo a implantação de programas e políticas públicas, com a fiscalização e participação ativa de organizações não governamentais e associações de famílias. Além disso, é inerente à qualidade dos serviços a importância do fornecimento de ambiência e boas práticas adequadas ao atendimento das crianças com TEA nos serviços de saúde de urgência e emergência, por meio de uma política de educação em serviço permanente