INTRODUÇÃO
A Infecção Latente por Tuberculose (ILTB) é definida como um estado de reação imunológica persistente a Mycobacterium tuberculosis, embora sem sintomas clínicos, achados radiográficos anormais ou evidência microbiológica de tuberculose ativa1. É reconhecida como a maior fonte de novos casos de tuberculose (TB) e principal motivo de alta mortalidade por essa doença2.
A prevenção e o tratamento da infecção são importantes devido ao risco de reativação da TB, influenciada por determinantes sociais, como pobreza e desigualdades no acesso aos sistemas de saúde, e fatores biológicos, como faixa etária e infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV)1,3,4.
Estratégias abrangentes e integradas de rastreio, diagnóstico e tratamento adequados da ILTB são componentes cruciais na eliminação da doença5. Contudo, a perda de pacientes na cascata de cuidados da ILTB é uma barreira importante para o seu manejo6,7.
No Brasil, a maioria das perdas no processo de tratamento da TB e ILTB ocorre nos primeiros estágios: identificação e investigação dos contatos8,9. Isto indica a Atenção Primária à Saúde (APS) como o caminho estratégico para se aproximar das metas para prevenção da doença e infecção10.
Experiências de atendimento de ILTB realizadas no Canadá e Austrália sugerem que os cuidados e o tratamento podem ser prestados de forma eficaz em um ambiente de APS, usando abordagem integrada centrada no paciente11. O acompanhamento contínuo, juntamente com a educação, a qualidade dos cuidados de saúde e as relações desenvolvidas nesse contexto, podem facilitar a adesão ao tratamento12,13.
Para garantir um tratamento seguro e eficaz para ILTB, o profissional de saúde deve avaliar periodicamente a evolução do paciente, que envolve monitoramento clínico, exames laboratoriais e educação do paciente4. A identificação de usuários com ILTB e seus contatos são tarefas que dependem fortemente de trabalhadores da saúde, especialmente aqueles que trabalham na Atenção Primária à Saúde, por ser esta uma estratégia efetiva de organização do sistema de saúde, de redes de cuidado e de enfrentamento de problemas, através de equipe multiprofissional e do trabalho colaborativo14. No entanto, estudos recentes indicam que perdas importantes ocorrem em todas as fases da cascata de cuidados da ILTB, contudo as razões para essas perdas não são bem conhecidas15,16.
Nesse sentido, compreendendo que através da percepção se reflete a importância que determinado fenômeno tem para a pessoa, e como ela se relaciona com o mesmo, torna-se relevante analisar a percepção e a experiência de profissionais da saúde sobre prevenção da Infecção Latente por Tuberculose (ILTB) no contexto da Atenção Primária.
MATERIAL E MÉTODO
Estudo exploratório, descritivo e de abordagem qualitativa. Tendo em vista a natureza deste objeto e o caráter multidisciplinar do universo estudado, profissionais que compõem equipes da atenção primária, optou-se pela realização de entrevistas semiestruturadas, analisadas por meio do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)17.
Esse método de pesquisa possibilita o resgate de discursos coletivos de forma qualitativa, com a representação social do pensamento, a partir de um discurso-síntese, que agrega contribuições de cada indivíduo18. O eixo teórico que fundamentou as análises foi das representações sociais, que na definição clássica apresentada19: "são mensagens mediadas pela linguagem, construídas socialmente e, ancoradas no âmbito do contexto do indivíduo que as emite". Desse modo, a percepção e experiência dos participantes, com a interpretação dos pesquisadores, foram transformadas em produto coletivo acerca da ILTB na atenção primária.
A amostra por conveniência foi constituída por oito profissionais, três médicos e cinco enfermeiros, trabalhadores da APS de três diferentes regiões do Brasil (Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e do Distrito Federal (DF), que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: experiência clínica mínima de um ano no desenvolvimento de práticas relacionadas à ILTB e vínculo contratual de trabalho permanente com o órgão público de saúde em que atuava no momento da pesquisa. Excluíram-se os trabalhadores que estavam afastados das atividades laborais por condições médicas ou pessoais.
A aproximação com os participantes se deu pelas seguintes etapas: a) levantamento de possíveis participantes pela equipe do projeto. A equipe de pesquisa contou com o apoio do Ministério da Saúde para o custeio das diárias de deslocamento para o DF e para formalizar o convite aos participantes de fora do DF; b) envio do convite por contato telefónico ou email institucional com conteúdos relacionados a: objetivos da pesquisa, procedimentos de coleta de dados, local de realização, aspectos éticos, cronograma; c) obtenção do Termo de Consentimento em resposta. Dois potenciais participantes do DF se recusaram a participar por indisponibilidade de horário; d) encontro presencial para entrevista. A pesquisa foi realizada em espaço privativo no DF.
Previamente, foram realizados entrevistas-testes com profissionais atuantes na APS para ajustes das questões evocativas. Por consenso dos pesquisadores, os dados da entrevista-teste não foram incluídos na análise. A entrevista foi gravada e conduzida por uma pesquisadora enfermeira, mestre em saúde coletiva, e três colaboradoras da área da psicologia, todas com experiência em pesquisa qualitativa. Uma das colaboradoras realizou o registro de conteúdos emergentes das falas e das expressões não verbais dos participantes durante a dinâmica grupal.
Utilizou-se um roteiro para evocações de conteúdos relacionados à percepção e experiência profissional sobre ILTB, estratégias utilizadas no tratamento na APS. A pergunta inicial foi: como tem sido sua experiência com o manejo da ILTB na APS? acrescentando locuções como: "O que mais?" "Tem algo mais a dizer?" "Como assim?" "Por quê?" "Quer complementar com mais alguma coisa?". Um formulário, contendo características sociodemográficas e ocupacionais dos indivíduos (idade, sexo, tempo de formação e atuação na unidade), foi utilizado para caracterizar a amostra. Para encerramento dos grupos, considerou-se a repetição de conteúdos emergentes, sem a introdução de novos componentes relacionados ao objeto de estudo.
A análise visou produzir os discursos do sujeito coletivo, caracterizados por representar o pensamento de uma coletividade, agregando em um discurso-síntese os conteúdos de sentido semelhantes emitidos por pessoas distintas16.
O processamento do conteúdos emergentes das falas dos participantes seguiu as etapas descritas por Lefevre20: a) análise detalhada de cada um dos depoimentos, b) seleção do conteúdo relevante de cada resposta, c) busca e nomeação das Ideias Centrais (nome ou expressão linguística que revela de maneira sintética e precisa o sentido dos depoimentos) e latentes (as ancoragens), d) identificação de expressões-chave (trechos curtos) que revelam a essência do conteúdo do discurso, e, a edição dos DSC.
Essa etapa final de produção do DSC é a elaboração da síntese, ou seja, do discurso único redigido com as ideias centrais e expressões-chave semelhantes, configurando uma opinião coletiva de uma pessoa coletiva, redigida na primeira pessoa do singular, a "coletividade falando" 17. Conforme o método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), proposto por Lefevre17,20.O DCS busca descrever e interpretar as representações sociais, visando revelar como as pessoas pensam, atribuem sentidos e manifestam posicionamentos sobre determinados assuntos. No campo da saúde, a complexidade do discurso coletivo pode apontar para o diferente, e, consequentemente, para a transformação social pois revelam o que a coletividade pensa, como pensa e como esse pensamento se distribui no espaço social17.
O presente estudo atendeu aos preceitos éticos da Resolução CNS n° 466/2012 e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) sob n. 3.029.507, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 88226218.0.1001.5060.
RESULTADOS
A maioria dos participantes eram mulheres (n=6). A idade variou de 30 a 45 anos, todos possuíam pós-graduação, sendo seis especialistas, um mestre e um doutor, com tempo médio de trabalho na APS de sete anos e meio. O discurso do sujeito coletivo desses profissionais sobre tratamento e prevenção da ILTB estão representados em quatro ideias centrais, apresentadas no Quadro 1.
Os discursos coletivos 1 e 4 descrevem a percepção e a prática dos profissionais sobre a ILTB, com ênfase na prescrição e supervisão da terapia medicamentosa. Esses discursos também expressam as dificuldades de adesão da População em Situação de Rua (PSR), e da continuidade das ações, decorrentes da inexistência da garantia dos fluxos assistenciais da atenção primária aos níveis de atenção de maior complexidade (Quadro 1).
A percepção do cotidiano profissional sobre prevenção em TB (Quadro 1) expressou nos discursos coletivos DSC 2 e 3 a prática profissional em atividades como campanhas públicas de rastreamento, salas de espera para educação em saúde durante a espera por atendimento e aproximações com familiares do usuário do serviço. Nos discursos, foi ressaltada a importância de consolidar a Estratégia de Saúde da Família, como uma equipe da atenção primária que "acompanha sua comunidade".
DISCUSSÃO
A APS constitui-se como pedra angular da cobertura universal de saúde10. Nesse contexto, destacase, no Brasil, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) como cenário potencial de reconstrução das práticas de saúde, onde o cuidado integral deve ser oferecido à pessoa, inclusive, àquelas com TB e seus familiares21.
A organização de fluxos e a produção de corres-ponsabilização entre os serviços e setores também são estratégias de prevenção relevantes nas ações de controle da TB, e requerem conhecimento detalhado, inclusive sobre a epidemiologia tanto da ILTB quanto da TB ativa22,23. Uma rede de saúde integrada, demanda mobilização de recursos e investimentos por parte de gestores para expandir as ações de saúde considerando os condicionantes que agravam o controle da doença, as características da situação de vida e as necessidades de saúde da população, com destaque para a que está em situação de rua.
O discurso coletivo dos profissionais da APS participantes deste estudo revela a importância desses cenários e estratégias, assim como suas vivências, movimentos e dificuldades na prevenção e tratamento da ILTB. As narrativas que explicam a primeira ideia central revelam que o tema faz parte do cotidiano profissional dos participantes, e que eles estão atentos às suas responsabilidades, limites e desafios.
Pensando limites e desafios, destacam-se no DCS 1 as práticas de cuidado e a não adesão ao mesmo da População em Situação de Rua (PSR). A expressão "supervisão" no discurso converge para o regime de Tratamento Direto Observado (TDO), estratégia que envolve ações de monitoramento e apoio na adesão ao tratamento, mediante vínculo entre usuário e equipe de saúde24. Lembra-se ainda que o enfrentamento da complexidade das situações envolvendo a PSR requer ações entre os serviços da saúde e outras de cunho intersetorial25. No entanto, percebe-se um discurso coletivo dos profissionais ainda voltado quase exclusivamente ao cumprimento da prescrição medicamentosa, e centrado no modelo biomédico.
A prevalência da ILTB e o risco de progressão para TB ativa, assim como a "não adesão" ao tratamento, são maiores na PSR do que na população em geral, devido aos diferentes tipos de vulnerabilidade e condições de vida degradantes(8, 22, 24). Portanto, trata-se de uma população que não apenas demanda por negociações contínuas quanto ao tratamento, mas que requer a estruturação de uma linha de cuidado, voltada ao acolhimento e cidadania.
Estudo com pessoas em situação de rua demonstrou a importância da afetividade e de atuar pela garantia de seus direitos fundamentais26, pois a luta por esses direitos é algo presente no cotidiano das mesmas, onde juntos, buscam por melhorias em diferentes contextos da vida. Esses dois aspectos seriam fundamentais para superar a ideia de um sujeito reduzido apenas às suas necessidades biológicas. Trata-se de um processo de desenvolvimento das pessoas, onde ao mesmo tempo em que se transforma o meio onde estão inseridas, elas acabam se transformando27. Assim, o desafio de tratar e reduzir a carga da tuberculose dessa população exige "compromisso político" e abordagem humanizada, para que sejam possíveis a incorporação de práticas de cuidado28. Ressalta-se, pois, a afetividade -interações, construção de vínculo e confiança- com o profissional de saúde, como potencializador e ponto de partida desse contexto.
A segunda ideia central evidencia o cuidado que os profissionais da APS têm para com o paciente e seus familiares. Traz à tona a importância do vínculo e inclusão com as famílias no plano de cuidados, para fortalecimento do controle do agravo18. A ESF seria protagonista dessa atenção10, responsável por gerar esse ambiente propício para adesão e continuidade do tratamento. O vínculo como forma de acolhimento e entendimento do paciente com uma visão que vai além do simples doente, extrapola a ideia básica de adscrever o doente à unidade de saúde, envolve aspectos psicossociais importantes da relação médico-paciente29.
Por sua vez, desse protagonismo também depende a educação continuada dos profissionais, que indicam a falta de regularidade e reconhecem a necessidade de uma capacitação permanente em seu cotidiano. Como menciona o DSC, essa qualificação é realizada pontualmente por movimentos campanhistas. As campanhas explicadas na terceira ideia central são relevantes, e devem compreender a necessidade contínua de saber trabalhar com criticidade, traduzindo os dados epidemiológicos para a realidade prática dos pro fissionais.
Para uma práxis inovadora, a educação permanente revela-se como o melhor caminho30, visto que contribui para a adoção de práticas educativas reflexivas e dialogadas pela ESF.
Por fim, a quarta ideia central evidencia a necessidade de melhor organização e desempenho dos serviços de saúde nas ações de controle da TB. Na concepção da integralidade, um sistema organizado em rede requer dispositivos de referência e contrarreferência articulados31, que garantam os diferentes níveis de atenção e sistemas de apoio para a promoção, manutenção, recuperação e cura da pessoa com TB, por meio de todos os tipos de tecnologias necessárias29.
Portanto, é indicado que as articulações devam ser sistematizadas e registradas para melhor efetividade do programa de TB23. No entanto, percebe-se que os profissionais não têm comunicação adequada com especialistas dos níveis secundários, o que dificulta a continuidade da assistência.
Na percepção de enfermeiras da APS também foram identificadas fragilidades na gestão do cuidado e controle da tuberculose. Os enfermeiros tinham clareza sobre suas competências, contudo não conseguiam realizar as dimensões do cuidado em sua plenitude, explicado, dentre outros aspectos, pela baixa cooperação multiprofissional. Os entrevistados destacaram, ainda, o papel ge-rencial e educador da enfermagem em Saúde Pública, como de referência e indispensável para o acompanhamento dos casos, mas as questões de gestão precisavam ser resolutivas para o efetivo controle da doença31.
A ampliação da prática clínica do enfermeiro no cuidado às pessoas com TB decorre da progressiva autonomia profissional, que exige conhecimento técnico-científico e político e não se concretiza de forma isolada, mas requer interfaces com o trabalho em equipe e a prática interprofissional32.
Considerando que o processo de adesão é dinâmico e pode sofrer influências multifatoriais, garantir um bom início de tratamento é o primeiro passo33. Além disso, o olhar sobre o território e o trabalho de forma integrada com a vigilância em saúde na busca de um fluxo de informação e de apoio intersetoriais entre os pontos da rede, assim como o entendimento do processo saúde-doença e os determinantes da doença29,33 são questões essenciais para se ampliar o escopo do cuidado ofertado à pessoa com tuberculose.
CONCLUSÃO
O presente estudo avança no conhecimento ao construir o discurso do sujeito coletivo sobre percepção e experiência dos profissionais da APS sobre o tratamento da ILTB. Os DSCs apontam que na percepção dos profissionais há a necessidade de aperfeiçoar a qualidade e gerenciamento da atenção à saúde, a reorganização da assistência, e a capacitação contínua dos profissionais. A fragilidade na integração com serviços especializados e ausência de fluxos assistenciais/linha de cuidado dificulta o cuidado e manejo da ILTB.A educação permanente dos profissionais é necessária e vai ao encontro da reflexão-ação crítica sobre a prática, enriquecendo seu papel educador esperado pela APS.
A partir dos achados aqui sistematizados as ações de prevenção e tratamento na atenção primária tem efeito potencializador para o enfrentamento da ILTB. A experiência em assistir e supervisionar o tratamento da ILTB para pessoas em situação de vulnerabilidade corrobora que os desafios no enfrentamento da TB dependem de intervenções técnicas, políticas e estruturais.
Destaca-se, também, que essas intervenções precisam levar em consideração a multideterminação da TB, as deficiências existentes nas dimensões social, programática e estrutural sobre a doença.
As limitações do estudo estão relacionadas ao tipo de amostra por conveniência, que limitou o tamanho ao número de profissionais participantes da pesquisa. Esse contexto também limitou explorar questões que surgiram no decorrer da pesquisa, por exemplo a melhor compreensão das relações interprofissionais na atenção primária e entre profissionais e as pessoas em situação de rua. A participação da pesquisadora na coleta de dados pode ter configurado um viés de informação visto que pode reduzir a imparcialidade na pesquisa.
O estudo mostrou a realidade de um serviço de atendimento específico (nível primário), com a impossibilidade de generalizar os resultados, sugerindo novos estudos em contextos mais amplos e outras realidades. Assim, o recorte realizado neste estudo não esgota as possibilidades de análises e de discussões sobre prevenção à ILTB, pelo contrário, ampliam-se as ideias para novas investigações sobre o tema que considerem outros níveis de atenção e atores envolvidos, especialmente, a PSR e os familiares da pessoa portadora de TB