INTRODUÇÃO
A violência é definida pela utilização de força física ou de poder contra si, outra pessoa ou grupo de pessoas, que tenha como resultado a ocorrência de lesão, morte, dano psicológico, limitação no desenvolvimento ou privação1. As manifestações de violência estão presentes do ambiente rural ao urbano e penetram a totalidade do tecido social, representando obstáculos para a garantia da dignidade humana2.
Apesar de constituir um produto histórico da própria evolução da sociedade3, aspectos como a disseminação massificada, o maquinário ideológico associado aos atos e a capitalização do fenómeno evidenciam que a violência é nutrida de modo contínuo na sociedade contemporânea. O fenómeno está presente em diversos setores e instituições sociais, inserindo-se nas relações de trabalho, no contexto intrafamiliar, nas instituições religiosas, no campo da saúde, da educação, dentre outros2.
No âmbito da formação superior, embora a universidade represente espaço de inclusão e tenha o objetivo de formar profissionais com compromisso ético-político-social4, a violência está enraizada em diversos comportamentos e condutas, necessitando, muitas vezes, criar ações afirmativas como uma forma de minimizar os impactos5. Manifestações violentas, geralmente sustentadas por relações de poder pré-definidas, invadem cenários de aprendizagem e impactam de modo negativo a qualidade da formação em diversas áreas do conhecimento6-8.
No contexto do processo de ensino-aprendizagem, destaca-se que alguns grupos são mais susceptíveis a vivenciar violência, devido às posições ocupadas na hierarquia instituída e às especificidades de cada área de saber. Neste grupo estão inseridos os estudantes de graduação em enfermagem, em virtude de o aprendizado e a própria atuação profissional possuírem características muito particulares, como o desenvolvimento de habilidades a partir do contato com o outro, muitas vezes em situação crítica de saúde, o preconceito de gênero, a desvalorização e o baixo status social atribuído à profissão e as problemáticas relacionadas às más condições de trabalho, o que gera estresse e excessiva competitividade9,10.
Estudos nacionais e internacionais evidenciam a violência como um fenómeno constante no contexto da graduação em enfermagem, tanto nas aulas teóricas como na prática clínica. Os autores da violência direcionada aos estudantes são colegas de classe, professores, pacientes, familiares de pacientes, enfermeiros supervisores e trabalhadores de outras categorias profissionais11-16.
Independente dos modos como se expressa e do ambiente onde é perpetrada, a violência pode implicar fragilidades na formação e no cuidado de enfermagem, pois funciona como elemento limitador para os estudantes de enfermagem em diversas instâncias15. Levando-se isso em consideração, este estudo objetiva compreender as manifestações da violência na graduação em enfermagem e seus efeitos na aprendizagem e no cuidado, a partir da perspectiva estudantil.
MATERIAL E MÉTODO
Tipo do estudo e cenário. Estudo de caráter qualitativo, com delineamento exploratório-descritivo, desenvolvido em uma Instituição de Ensino Superior (IES) do Brasil. A IES oferta o curso de graduação em enfermagem há mais de 50 anos, conta com diversos programas de pesquisa, extensão e um fortalecido Programa de Pós-Graduação.
A graduação em enfermagem está organizada em dez semestres letivos, com aulas teóricas e práticas. O corpo docente do departamento é composto por mais de 60 profissionais, a maioria com título de Doutor em Enfermagem ou em áreas das Ciências da Saúde. O início do curso é composto por aulas teóricas, com componentes curriculares que objetivam construir uma base teórica acerca das ciências biológicas e da saúde. Gradativamente, o estudante é inserido nos conteúdos e práticas específicas da enfermagem, até atingir a etapa de estágios curriculares, os quais são desenvolvidos quase integralmente nos serviços de saúde. A média nas aulas teóricas é de 40 estudantes; nas aulas teórico-práticas, que ocorrem nos serviços de saúde, a média é de seis estudantes por professor; e nos estágios supervisionados o quantitativo depende do contexto prático escolhido pelo estudante. Para obter o grau de bacharel em enfermagem, os estudantes devem concluir 4.980 horas aula de atividade.
População e Critérios de seleção: Os participantes do estudo foram estudantes do curso de graduação em enfermagem. Considerou-se como critérios de inclusão: idade maior do que 18 anos, estar matriculado no curso de graduação em enfermagem entre o 2° e 10° semestre do curso e, no caso de estudantes transferidos de outras instituições, estar em atividade na IES investigada por, pelo menos, um ano. Foram excluídos da pesquisa: estudantes em situação de suspensão ou afastados da universidade por outros motivos, que não estivessem regularmente matriculados ou que estivessem no 1° semestre do curso. Este último adotado com o objetivo de minimizar a chance de viés nos resultados da pesquisa, tendo em vista que o primeiro semestre da graduação é permeado por desafios de adaptação e de mudanças, o que poderia implicar em relatos de violências não relacionadas diretamente ao processo ensino-aprendizagem.
Coleta de dados: Os dados foram obtidos por meio de entrevistas. Os estudantes foram convidados para participar do estudo por e-mail, os quais foram coletados em uma primeira etapa da pesquisa, de caráter quantitativa e que envolveu 208 estudantes. Para selecionar os estudantes foi considerado a pluralidade de grupo étnico autodeclarado, observação de diferenças de gênero e de idade, distribuição por fases dos cursos e maior frequência de exposição aos atos de violência, características identificadas na primeira etapa da pesquisa. Foram realizadas quatro rodadas de convites para participação, convidando 15 estudantes de forma aleatória a cada tentativa. O convite foi enviado uma única vez para cada participante. Retornaram positivamente ao e-mail cinco estudantes na primeira tentativa, três estudantes na segunda, três estudantes na terceira e quatro estudantes na quarta tentativa. Para realizar uma nova rodada de convites os pesquisadores aguardavam resposta por um período de 10 dias. Ressalta-se a impossibilidade de inclusão dos estudantes do 2° e 3° semestre no estudo, pois não responderam ao e-mail de convite ou negaram a participação na entrevista.
Conforme ocorria aval positivo de um estudante, os pesquisadores realizavam a entrevista de forma individual e continuavam lançando os convites por e-mail aos outros estudantes. Ao final da quarta tentativa não foi mais necessário buscar novos participantes, dado o alcance da saturação dos dados e que todos os estudantes do 2° e 3° semestres do curso já haviam sido convidados. As informações obtidas começaram a se repetir a partir da 12° entrevista, com relação à tipologia e natureza dos atos de violência. Foram realizadas mais três entrevistas para confirmação da saturação dos dados, a qual foi estabelecida na 15a entrevista, diante das limitações dos dados empíricos em apresentar novas informações entre o objeto de estudo e a população investigada.
A condução das entrevistas ocorreu com base em um instrumento pré-estruturado, composto por questões relacionadas ao fenómeno da violência e suas significações para os participantes. O instrumento continha 15 perguntas, divididas em quatro dimensões: compreensão da violência, relações entre os atos violentos e as características individuais, percepção e vivência da violência no contexto da graduação em enfermagem, e possíveis estratégias de resistência.
As entrevistas foram realizadas em local preservado, apenas com a presença de um pesquisador e do participante, nos meses de maio e junho de 2019. A duração média foi de 25 minutos, sendo que a menor entrevista teve 12 minutos de duração e a maior durou 42 minutos. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, totalizando mais de seis horas de áudio transcrito. Além disso, no decorrer da conversa, o pesquisador tomava nota das informações mais relevantes para compreender a relação entre os participantes e o fenómeno.
Análise e tratamento dos dados: As informações obtidas foram tratadas por meio de análise de conteúdo17. Na primeira etapa, pré-análise, foi realizada a leitura flutuante do conjunto de enunciações, com leitura exaustiva das entrevistas, organização dos dados em tabelas e estudo detalhado do conteúdo. A exaustividade na leitura, representatividade da amostra e a homogeneidade possibilitaram a formulação das primeiras hipóteses e codificações. Na segunda etapa, exploração do material, foi iniciada a categorização das enuncia ções, organizando-se os pontos centrais extraídos na primeira codificação. A exploração seguiu uma organização e sistematização por proximidade de sentidos e significados das informações, resultando em diversas categorias de discussão. Na terceira etapa, tratamento dos resultados, as categorias foram confrontadas e os principais pontos de discussão desvelados: experiências de violência com colegas, professores e profissionais; relações entre os atos de violência e as características individuais dos estudantes; espaços de aprendizagem nos quais a violência está mais presente; perpetradores da violência; e efeitos e consequências da violência na vida dos estudantes.
Aspectos éticos: A pesquisa respeitou todas as orientações da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil. Foi desenvolvida com anuência da IES envolvida e mediante aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, no dia 04 de outubro de 2018. Todos os estudantes que aceitaram participar da pesquisa assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Com o objetivo de preservar a identidade dos estudantes, as falas serão identificadas pela letra P, de participante, seguido pelo número correspondente à entrevista (P1, P2, P3 etc.).
RESULTADOS
Integraram a pesquisa 15 estudantes, com faixa etária entre 20 e 43 anos. No que diz respeito à distribuição por períodos do curso, foi entrevistado um estudante do 4° semestre, um estudante do 5° semestre, um estudante do 6° semestre, seis estudantes do 7° semestre, um estudante do 8° semestre, três estudantes do 9° semestre e dois estudantes do 10° semestre.
Os dados indicam que a ocorrência de violências está relacionada a diversos fatores. As características individuais dos estudantes, como a forma de se expressar, a orientação sexual e o grupo étnico/ racial, foram identificadas como marcadores de desigualdades no contexto da formação e estão associados com situações de violência: Eu tenho uma idade um pouco maior que a base dos meus colegas de classe, e eu fui muitas vezes taxada como "ah, no teu tempo" "ah, na tua idade" "ah, como tu é velha" (P14).
Tinha um professor que sempre pegava no pé dos meninos gays (...) era maispegação no meu pé, de me achar um mau aluno, essas coisas. Hoje eu vejo que sim, era relacionado com a minha orientação sexual, porque não era só comigo, foi com vários meninos gays que passaram antes e depois de mim (P2). A gente sabe, na enfermagem tem pouquíssimas pessoas negras, então, sempre têm coisinhas assim "É porque é mistura", "Ah, porque tem um pezinho na Africa, né?" Então eu comecei a notar... de dizer "ah, mas nem para ser preto serve, né?", e sempre sorrindo, zombando (P3).
Com relação ao ambiente de aprendizagem, no contexto teórico, as situações de opressão estão vinculadas, geralmente, com a não valorização do estudante e com a ausência de uma educação que estimule a reflexão e permita ao estudante se sentir parte do processo de aprendizagem: Tem várias situações, principalmente dessa relação professor-aluno, no quesito de desprezar o que o aluno está falando porque ele é um aluno, porque naquele espaço ele não deveria ter voz (P5). Eu escutei de uma professora que falou para a turma inteira que a graduação era prioridade e que não interessava se a pessoa trabalhava ou não. Elas (professoras) vivem falando em humanização na teoria, mas não sabem como aplicar isso com os alunos, eu acho que tem muito assim: "Eu sou professora e eu sou detentora do conhecimento e eu estou passando para vocês e fechou" (P7).
No contexto prático, a violência está direta-mente vinculada aos procedimentos técnicos, neste sentido, quanto menos desenvolvidas as habilidades e a destreza do estudante nas execuções das técnicas de enfermagem, maior é a propensão de que sofra violência. Além disso, campos práticos com pacientes em situação crítica de saúde foram os espaços com maior número de situações de violência, conforme falas dos estudantes: Todo dia ela (professora) chegava e dizia "Ah, se fosse preciso àquilo que era para vocês passarem na fase, vocês não iriam passar", "Ah, porque vocês nunca sabem fazer nada", "Ah, porque vocês não sabem nem aspirar uma medicação" e ela sempre julgava, então eu chegava todo dia em casa chorando, mal, porque ela sempre dizia que a gente não tinha capacidade para estar ali, que se dependesse dos pré-requisitos da disciplina, que a gente não seria aprovado, que todos nós iríamos reprovar (P6).
Era uma tortura e era cotidiana. O professor era muito bom, só que ele cobrava muito dos alunos, na verdade não tem importância a pessoa cobrar, mas o modo como era cobrado, era um tipo de violência psicológica, eram frases como: "Se você não souber isso, se você não decorar isso, você não vai ser um bom enfermeiro", "Não sei o que você está fazendo aqui, você não é capaz de cuidar de alguém" (P9). Dentro do Centro Cirúrgico, eu fui auxiliar e ficar observando na sala como era a dinâmica, e eu foi ajudar a colocar o campo (cirúrgico), e aí ele (anestesista) estava pendurando de um lado (o campo) e eu fui pegar do outro e ele simplesmente pegou a pinça que estava usando para pendurar o campo e bateu com tudo na minha mão, mas bateu mesmo, na hora até puxei a mão, porque doeu. Aí fiquei olhando para ele sem reação nenhuma e ele falou assim para mim "Sai daqui, porque isso não é para vocês fazerem" (P1).
Além disso, estudantes relatam que, pela característica avaliativa das atividades práticas e posturas pedagógicas dos docentes, muitas vezes, não comentam suas dúvidas com os professores, mas com os profissionais do serviço. Também mencionam situações nas quais estudantes desenvolveram práticas assistenciais de modo equivocado, mas não foram capazes de relatar a situação para o professor ou para os profissionais do serviço:
Já teve várias vezes de eu perguntar para o enfermeiro antes de ir perguntar para o professor, por medo, receio do que ele poderia me responder, me criticar e a punição. O medo maior do estudante acho que é a punição por nota, por reprovar ou então até o julgamento de o professor chegar no final do estágio e dizer que "Ah, você não vai ser um bom enfermeiro" (P4).
Eu prefiro perguntar para os técnicos que estão ali comigo do que perguntar para a professora. Tem professor que é muito aberto, mas tem professor que tu sabes que vai vir uma cacetada (P2). Eu fiquei muito mal, porque acho que administrei errado (um medicamento) e eu não tive coragem de falar com o professor, porque era uma professora muito rígida e que com certeza iria me reprovar ou, talvez, o meu medo era maior, né? (P4).
As situações de violência repercutem de modo negativo no processo de aprendizagem, tendo em vista que os eventos causam estresse e sentimentos de medo, ansiedade, desânimo e vontade de desistir do componente curricular ou do curso de enfermagem:
Em muitos momentos a gente quer falar alguma coisa, a gente está empolgada com alguma coisa só que a gente não pode falar, não pode discutir porque vai se sentir violentada, sabe? (P10). Levantava todos os dias pedindo "Que passe logo, que passe logo, eu quero que passe logo", queria que acabasse de uma vez, porque eu não me sentia confortável no estágio, não tinha vontade de ir para o estágio (P1). Eu pensei em desistir muito, porque eu achei que estava entrando em uma profissão errada para mim, e esse lado de já começar tu sendo aluno, tu não ajudas o teu colega, esse individualismo prejudica muito, tu vês que já começa na graduação (P15).
A vontade de desistir do componente curricular e/ou do curso foi mencionado por quase todo o universo de pesquisa. Este sentimento está associado mais fortemente com casos nos quais houve violência no campo de prática, pois, de acordo com os estudantes, sentem-se humilhados e criam bloqueios psicológicos quando da tentativa de realizar as mesmas atividades novamente.
DISCUSSÃO
As informações demonstram que características pessoais dos estudantes, como a faixa etária, a sexualidade e o grupo étnico são fatores que aumentam a chance de sofrer violência. Os atos violentos estão presentes em ambos os contextos de aprendizagem, tanto teórico como prático e são praticados por colegas, por profissionais dos serviços de saúde e, principalmente, pelos professores.
Com relação à associação entre características pessoais dos estudantes e a ocorrência de violência, nota-se que há maior possibilidade de um estudante vivenciar atos violentos quando não atende a um perfil pré-determinado de enfermeiro/enfermeira, rompendo padrões ligados à própria gênese da profissão, os quais remontam ao final do século XVIII e início do século XIX. Neste período, esperava-se que a enfermeira fosse subserviente, respeitasse a hierarquia e desenvolvesse suas atividades de forma humilde e obediente às normativas morais da sociedade18,19. Embora os tempos tenham se transformado, as heranças estereotipadas da época parecem ainda estar presentes na educação em enfermagem, acompanhando o cotidiano de aprendizagem.
No caso dos atos violentos praticados entre os estudantes, o que caracteriza uma prática horizontal da violência, é possível inferir que ocorram em virtude da competitividade entre os acadêmicos. Influenciados por uma noção meritocrática de educação, acreditam que o mérito estudantil só pode ser alcançado mediante comprovada excelência nas atividades pré-definidas para mensuração de desempenho acadêmico, como a atribuição de notas20. Assim, pensam na avaliação de desempenho como uma constatação verídica do nível intelectual do estudante e, quanto maior for a nota atribuída, mais sabedoria terá o sujeito sobre aquele determinado tema ou assunto. Este comportamento induz a uma competitividade demasiada, aumenta a incivilidade e produz estresses de diversas naturezas14,21, abrindo precedente para a produção de violências.
No âmbito dos serviços de saúde, observa-se a prática de violência por parte dos trabalhadores, principalmente de outras categorias profissionais. Sobre isso é importante lembrar que a integração ensino-serviço é fundamental para a qualidade da educação na formação profissional em saúde, tendo em vista que a ausência desta interlocução impede o estudante de vivenciar uma formação de qualidade e comprometida com as reais necessidades da população22.
Sobre a violência praticada pelos docentes, em contexto teórico e prático, as falas indicam que os professores assumem posturas verticalizadas, nas quais as experiências e as opiniões dos estudantes são desconsideradas, caracterizando violência pe-dagógica23. Os estudantes costumam ser podados quando da tentativa de participação ativa em sala de aula, o que se torna ainda mais evidente nas situações em que discordam, em alguma medida, das condutas dos professores. Informações semelhantes foram encontradas em estudo brasileiro14, onde, ao contrário do que é esperado para o docente, se observou descaso e desprezo aos estudantes, gerando sentimentos de inferiorização e incapacidade.
Os estudantes sentem dificuldades para compartilhar situações do cotidiano, sanar dúvidas e para contribuir com a construção do conhecimento em sala de aula e durante as práticas, devido ao medo de sofrer algum tipo de opressão no contexto de aprendizagem. Além disso, diversos acadêmicos relataram o desejo de desistir do componente curricular e/ou do curso em função do constrangimento e das situações de violência vivenciadas. Resultados de outros estudos indicam que a tendência de abandonar a graduação não é uma realidade exclusiva do contexto pesquisado, pois em outras regiões do Brasil e no exterior os estudantes em situação de opressão apresentam maior nível de absenteísmo, maior probabilidade de desenvolver Síndrome de Burnout, maior nível de estresse e de ansiedade e, consequentemente, acabam se afastando de um componente curricular específico ou do curso como um todo15,21,24,25.
Devido à constante vinculação do fenómeno aos cenários de prática, torna-se relevante assinalar que existem diferenças muito marcantes entre as aulas teórico-práticas e os estágios supervisionados. O primeiro caso representa, para a maioria dos estudantes, um período crítico de aprendizagem, pois se trata de um cenário de ensino desconhe cido, onde há o primeiro contato com a assistência direta às pessoas e com as práticas de enfermagem. Deste modo, geralmente é permeado por questionamentos, inseguranças, inquietações e estresse, pois os estudantes ainda sentem dificuldade em transformar a base teórica construída na sala de aula em cuidado de enfermagem26,27.
Por outro lado, nos estágios supervisionados, desenvolvidos nas últimas etapas do curso de graduação, os estudantes estão mais habituados com os cenários de prática, pois já vivenciaram estes ambientes durante os semestres que antecedem este período. Assim, espera-se que tenha um nível mais elevado de conhecimentos relacionados aos procedimentos de enfermagem, bem como maior segurança para executá-los. Daí a importância que o professor diferencie os processos de avaliação para os dois momentos, buscando atribuir um caráter mais formativo do que avaliativo nas atividades teórico-práticas27.
Ao identificar que grande parte das situações de violência ocorre nos cenários de prática, percebe-se que estes espaços podem configurar cenários de pouca aprendizagem. Ao não referenciarem o professor como figura de apoio os estudantes buscam outras formas de orientação para desenvolver as atividades práticas, comprometendo a correta execução dos procedimentos de enfermagem. Como observado nas falas, essa situação pode gerar imprudência e negligência no cuidado com os pacientes. A respeito disso, estudos relacionam a violência vivenciada pelos estudantes à oferta de um cuidado pouco humanizado e permeado pela reprodução dos atos violentos11,12,28,29.
No contexto pesquisado também se observa que as situações de violência parecem influenciar na formação devido ao caráter avaliativo das aulas, principalmente em campo prático. Sobre isso, estudos discutem que o caráter avaliativo no cenário de aprendizagem prático gera percepções equivocadas da figura docente, pois, ao invés de ser compreendido pelo estudante como um sujeito com saberes e experiências diferenciados e disposto a compartilhá-los na construção de novos conhecimentos, é visto exclusivamente como um avaliador da competência técnica do estudante21.
Considera-se que as competências relacionadas aos procedimentos técnicos são importantes para o exercício da profissão, contudo, levandose em consideração que a prática docente exige, dentre outras coisas, a reflexão crítica sobre o ato pedagógico, é imprescindível pensar sobre os momentos e as metodologias de avaliação dos estudantes com relação às habilidades técnicas, pois isso influenciará na efetividade da aprendizagem. Além disso, é importante ressaltar a necessidade de repensar a atribuição de notas como forma de avaliação dos estudantes, uma vez que simboliza relações de poder ancoradas na punição e, geralmente, não representa uma análise consistente do aprendizado do estudante21,30.
A realização deste estudo contribui para a enfermagem no sentido de expor um fenómeno que influencia de modo direto na vida e na formação dos futuros enfermeiros e enfermeiras. Além das informações que são discutidas também por outras investigações nacionais e internacionais, esta pesquisa aponta a intolerância diante de características particulares dos estudantes (étnico-raciais, faixa etária, orientação sexual) como promotora de atos violentos, bem como, o processo pedagógico enquanto produtor de violências, mesmo quando parece não haver intencionalidade, como no caso das avaliações de aprendizado. Essas informações devem ser interpretadas como um convite aos atores envolvidos na formação em enfermagem, para repensar algumas ações e minimizar o fenómeno da violência neste contexto.
Sobre as limitações do estudo, reconhece-se que a investigação com docentes, coordenadores de curso e profissionais dos serviços e a adesão a outras metodologias de obtenção de dados, poderia ter qualificado as informações. A falta de participantes do 2° e 3° semestres do curso pode representar um viés na pesquisa, pois possivelmente outras vivências de violência poderiam ter sido descritas por estes estudantes. Além disso, por se tratar de dados muito subjetivos e acessar um lugar íntimo dos participantes, os pesquisadores podem, em certa medida, ter valorizado algumas características específicas em detrimento de outras, direcionando e dando foco às questões de maior representatividade ou de menor abordagem por outras pesquisas da área.
CONCLUSÃO
A violência se manifesta de diversos modos durante o processo ensino-aprendizagem no curso de graduação em enfermagem. Os atos direcionados aos estudantes são perpetrados, hegemonicamente, por professores, contudo, colegas de classe e os profissionais do serviço também são mencionados como opressores.
No ambiente teórico, a opressão está mais vinculada às questões relacionais, entre estudante-estudante e estudante-professor. No cenário prático, os atos estão aliados a fatores como a habilidade e a destreza técnica, além da dificuldade do relacionamento com trabalhadores de outras categorias profissionais. Em ambos os contextos, a postura pedagógica rígida do docente e o caráter avaliativo das atividades abriram precedente para a produção de violência e influenciam negativamente tanto no aprendizado dos estudantes, como no cuidado de enfermagem.